Todo
23 de março, celebra-se o Dia do Mar na Bolívia. É uma espécie de Carnaval
patriótico, em que adultos e crianças se vestem de marinheiro ou usam fantasias
com chapéu de barco, ondas ou qualquer outro tema "oceânico" e
desfilam rumo à plaza Eduardo Albaroa. Também valem roupas de soldado ou os
trajes tradicionais dos povos de língua quéchua e aimará, etnias da maioria da
população do país. O presidente faz um discurso. Acontecem salvas de canhões e
paradas militares, inclusive da Marinha boliviana.
A Bolívia não tem mar. E esse é o
ponto do Dia do Mar.
Um pedaço de Marte
A Guerra do Pacífico, como ficou
conhecida, colocou Chile contra Bolívia e Peru de 1879 a 1883. Em números
absolutos, foi mais modesta que a Guerra do Paraguai, envolvendo cerca de 70
mil combatentes, contra 350 mil. Mas suas consequências e seus ressentimentos
seriam bem mais dramáticos. "Como a maioria dos conflitos no que
posteriormente seria conhecido como Terceiro Mundo, a Guerra do Pacífico foi um
grande momento para os povos envolvidos, mas acabou largamente ignorada fora da
região", afirma o historiador Bruce W. Farcau em The Ten Cents War.
Historicamente, a região não valia nada. Era um pedaço de terra seca, sem rios,
no deserto mais inclemente do mundo - o Atacama, onde o período entre duas
chuvas se mede em décadas. E uma precipitação anual 20 vezes menor que nas
partes mais secas do deserto do Saara. Não há nenhuma vida vegetal ou animal
ali, exceto no litoral, onde nevoeiros oferecem alguma umidade a líquens e
cactos. A região é comumente usada por equipes de filmagem quando querem
recriar o ambiente de Marte, como na série Space Odissey (2004), da BBC.
(Perdido em Marte, de 2015, não; esse foi filmado na Jordânia).
No conturbado processo de
independência das colônias da América do Sul, o deserto acabou dividido entre o
Peru, que conquistou a independência, em 1821, e a Bolívia, liberada em 1825.
Os países, que eram simplesmente o "Peru" na época colonial,
unificaram-se em 1833, e isso levou a uma primeira guerra com o Chile, entre
1836 e 1839, separando-os novamente. O Chile não queria um vizinho gigante ao
norte, mas não levou nenhum território - e nem estava interessado. Isso mudaria
radicalmente na década de 1840, quando começou a se explorar um recurso
inusitado: o guano, excremento de aves marinhas que, sem chuvas para removê-lo
e ressecado pelo sol, forma morros brancos em rochas perto do mar. "Os
chilenos nunca se incomodaram com a questão de fronteiras até a descoberta do
guano", afirma o cientista político Waltraud Q. Morales em A Brief
History of Bolivia.
O guano tem em sua composição o
nitrato de sódio, ou salitre, que começava a ser usado em fertilizantes e era
matéria-prima na produção de explosivos. Não apenas nas pedras brancas mas
também enterrado no solo, havia enormes depósitos de salitre no Atacama. Isso
tornou, da noite para o dia, o terreno morto em um dos pontos mais importantes
da Terra.
A princípio, o Chile não precisou
tomar territórios para se favorecer com isso. Com instituições privadas e
governamentais bem mais sólidas que as dos vizinhos, foram as indústrias
chilenas, fomentadas por capitais britânico, francês e americano, que
rapidamente se instalaram na região, com mão de obra dos próprios chilenos e
migrantes do mundo todo, inclusive da China.
Acordo secreto
A situação mudou em 1878, quando o
Congresso boliviano tornou nulo um acordo que isentava de impostos a chilena
Compañia de Salitres y Ferrocarril de Antofagasta (ferrocarril é
"ferrovia" em espanhol e Antofagasta era a cidade mais ao sul do
litoral boliviano, na fronteira com o Chile). A Compañia deveria pagar 10
centavos de peso para cada 100 kg de salitre extraídos. A empresa se recusou, e
o Congresso boliviano votou por confiscar suas propriedades, marcando o início
do processo para 23 de fevereiro de 1879. No dia da execução, 500 soldados chilenos
desembarcaram em Antofagasta para proteger a empresa - foram recebidos com
festa, já que 95% da população da cidade era chilena.
A princípio, os bolivianos decidiram
contornar a situação com eufemismos. A declaração de guerra contra o Chile foi
aprovada pelo Congresso em 27 de fevereiro, mas não foi anunciada. Em vez
disso, o presidente, Hilárion Daza, preferia falar em "estado de
guerra". Em 1º de março, anunciou a expulsão dos chilenos do país. Com ou
sem declaração, os chilenos se mexeram. Em 23 de março, 554 soldados chilenos
avançaram pelo deserto, rumo à cidade de Calama. Lá enfrentaram e massacraram
135 civis e soldados, comandados pelo engenheiro Eduardo Albaroa - que se
tornou o mártir do Dia do Mar e herói na Bolívia.
O Peru também tentou evitar o pior.
Desde 1872, tinha um acordo de defesa secreto firmado com a Bolívia, que exigia
que honrasse o compromisso. Os peruanos tentaram sediar um congresso de paz em
seu país, mas o Chile, tomando conhecimento do acordo de defesa, preferiu
declarar guerra a ambos os países em 4 de abril de 1879.
Ofensiva brutal
Avançar pelo deserto era complicado. O
Chile preferiu, então, fazer uma guerra focada em combates navais e invasões
anfíbias. O país tinha 7 navios, e o Peru, 6 - a maioria comprada dos
americanos após a Guerra Civil que funcionavam a vapor e eram modernos para a
época.
Em 5 de abril, os chilenos bloquearam
o porto peruano de Iquique. Após uma troca de tiros, o Peru conseguiu expulsar
os navios chilenos da cidade e afundar um dos 7 navios da Marinha chilena, mas
a um enorme preço: o Independencia, um de seus dois navios mais bem armados,
bateu em uma rocha e afundou. Com a retirada chilena, o segundo navio peruano
mais poderoso, o Huáscar, passou a circular pelas guarnições costeiras chilenas
e fazer ataques esporádicos, atrasando seu avanço. Em 8 de outubro, os chilenos
conseguiram capturar o Huáscar, na Batalha de Angamos, e o usaram contra as
forças peruanas. Depois disso, ficaram praticamente livres para desembarcar
tropas. Em 2 de novembro, baixaram em Pisagua, 500 km ao norte de Antofagasta.
Em 19 de novembro, conquistaram Iquique. Com um tanto de excesso de confiança,
levaram o que foi seu maior revés na guerra: em 27 de novembro, na Batalha de
Tarapacá, uma coluna chilena de 2,3 mil homens enfrentou 4,5 mil peruanos e
bolivianos e foi massacrada. Apesar disso, os peruanos não conseguiram manter a
posição e recuaram para Arica, e as notícias causaram uma enorme turbulência
política. Em 23 de dezembro, um golpe de estado depôs o presidente peruano,
Mariano Ignazio Prado, e o boliviano Hilárion Daza fugiu para a Europa no dia
27. Em 26 de fevereiro de 1880, os chilenos invadiram Ilo, isolando as tropas
de reforços via Peru. Em 26 de maio, na Batalha de Tacna, destruíram a maioria
do que restava do exército, fazendo com que a Bolívia se retirasse do conflito.
Em 7 de junho, liquidavam a fatura na Batalha de Arica, em que 5 mil chilenos
venceram 1 903 peruanos, deixando o inimigo sem exército.
Em 23 de outubro, numa conferência
mediada pelos americanos no navio USS Lackawanna, em Arica, tentou-se uma
solução de paz sem resultados. Os chilenos decidiram ir até o fim. Em 17 de
janeiro, 23 mil militares chilenos invadiam a cidade de Lima, defendida por 18
mil civis recrutados às pressas e por sobreviventes do exército. A cidade foi
saqueada, as mulheres, estupradas, e mesmo a Biblioteca Nacional teve seu
conteúdo transferido para o Chile - 3 778 livros, só devolvidos em 2007.
Paz ressentida
Aos peruanos, restou fazer uma
campanha de guerrilha e revolta civil até 1883, quando o Tratado de Ancón
encerrou as hostilidades. A Bolívia assinou uma trégua em 1884, e um tratado
definitivo de "amizade", cedendo todo seu litoral, em 1904, em troca
de livre acesso ao porto de Arica e a construção de uma ferrovia ligando-a à
capital, La Paz.
O boom do guano durou pouco: no início
do século 20, os alemães criaram formas sintéticas de nitrato e a região perdeu
interesse comercial. Mas o Chile aproveitou: "Antes de o nitrato de
potássio ser produzido sinteticamente, o Chile já havia explorado fontes
naturais de nitratos por muitos anos, à custa das regiões ocupadas da Bolívia e
do Peru", afirma o historiador Cesar Augusto Barcellos Guazzelli, da
UFRGS. Em 1929, quando os bolsões de guano não tinham mais valor comercial, a
região de Tacna, no extremo norte, foi devolvida ao Peru. Na década seguinte, o
cobre seria descoberto na região. Hoje, o Peru é o segundo maior produtor do
mundo, atrás do Chile. Talvez por isso o ressentimento lá sejam um pouco menor
que na Bolívia.
Os
bolivianos nunca se esqueceram. Depois da guerra, perderam ainda territórios
para o Brasil - o Acre, em 1903 - e para o Paraguai - a região do Chaco, em
1935, após outra guerra tola e sangrenta -, além de outros nacos para Chile e
Argentina. A soma é cruel: em 1825, a Bolívia tinha 2,36 milhões de km2. Hoje
sua área é pouco maior que 1 milhão de km2. Ou seja, o país perdeu mais da
metade de suas terras. Essas regiões ainda aparecem nos discursos nacionalistas,
mas o litoral é o topo das prioridades. Por todo o país, há murais e estátuas
apontando para o mar, ilustrando os massacres da guerra, pedindo a devolução.
De 2002 a 2005, esse sentimento voltou a aflorar na "Guerra do Gás",
uma série de protestos e greves iniciada pela proposta de exportar gás natural
através de uma linha até o Chile, em que sentimentos antichilenos se misturaram
a anticapitalistas e antiamericanos. Evo Morales, que vinha de uma carreira em
defesa dos plantadores de coca, liderou protestos pela nacionalização do gás e
acabou eleito presidente, em 2005, fazendo reformas que incluíram uma nova
Constituição.
A atual Constituição boliviana anuncia
com todas as letras que "o Estado boliviano declara seu direito
irrenunciável ao território que dá acesso ao oceano Pacífico e seu espaço
marítimo", a seguir toma o cuidado de acrescentar que isso se dará por
"vias pacíficas".
O Chile considera isso um entrave à
retomada das relações diplomáticas dos países, paradas desde 1978. É fácil
entender por quê: os departamentos ao norte do Chile têm a maior renda per
capita e Índice de Desenvolvimento Humano do país graças ao cobre, e o metal
responde por metade das exportações chilenas. "Além de uma questão de
soberania nacional, isto faria da Bolívia um país competidor com o Chile pelo
mercado aberto pelo Pacífico, o que é impensável nos termos atuais da economia
latino-americana. Controlando as exportações que passam pelo seu país, os
chilenos precisariam de compensações econômicas de vulto para ceder tais
direitos", afirma Guazzelli. Os tempos mudam, mas nem tanto.
O caso está no Tribunal de Haia desde
2013. A Bolívia está confiante na vitória.
Fronteiras
tensas
O Atacama é o deserto mais letal do
mundo, mas não só por falta de água. Alguém tentando cruzar a fronteira entre
Peru e Chile, ao norte de Arica, vai se deparar com uma "atração"
inusitada: campos minados, marcados por placas em espanhol, inglês e aimará.
113 121 minas antipessoal e antitanque foram plantadas na fronteira pelo governo
Pinochet (1973-1993) e vem sendo removidas desde 2000, mas apenas 9,34% do
total foi desativado, segundo dados do governo chileno.
As encrencas do Chile não se limitaram
ao norte. Em 1978, quando ditaduras militares dominavam ambos os países, Chile
e Argentina quase entraram em guerra por causa de três ilhas minúsculas no
canal de Beagle, que faz a passagem do oceano Atlântico para o Pacífico e corta
os dois países. A Argentina chegou a preparar uma invasão militar das ilhas,
que considerava suas, mas desistiu na última hora. Até o papa teve de intervir:
com o fim do regime militar argentino, o presidente Raúl Alfonsín assinou no
Vaticano um acordo com Pinochet, entregando as ilhas ao Chile. Pinochet, de seu
lado, plantou também minas na fronteira com a Argentina.
Mas mesmo um tirano como Pinochet teve
seu momento de iluminação - ou, quem sabe, solidariedade a outros ditadores
militares. Em 1972, quando a Bolívia estava sob a ditadura do general Hugo
Banzer e o Peru sob a do general (de esquerda) Juan Velasco Alvarado, ele
propôs entregar uma faixa de terra à Bolívia, ligando o país à cidade de Arica.
Os bolivianos deveriam entregar uma faixa equivalente ao Chile, incluindo aí o
território da faixa marítima. Os bolivianos ficaram exultantes, mas, como Arica
originalmente era parte do Peru, não da Bolívia, os acordos com o Chile exigiam
a consulta ao Peru antes da entrega. O ditador peruano não gostou e propôs que
os 3 países dividissem Arica. Acabou ficando tudo como estava - e está.
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