terça-feira, 28 de março de 2017

Sangue, aço, chamas: A Era Viking

Isabelle Somma



No fim do século 8, a ilha de Lindisfarne, na costa nordeste da Inglaterra, abrigava agricultores, pastores e religiosos. Era um local sagrado, onde Santo Aidan havia vivido 100 anos antes. Todos os tesouros do povoado se resumiam a um punhado de objetos de culto, como cálices e hostiários feitos de metais preciosos, que ficavam guardados num mosteiro. Como a maioria da Europa era cristã, os moradores de Lindisfarne podiam até temer uma invasão, mas tinham certeza de que suas relíquias religiosas jamais seriam tocadas. Toda essa confiança ruiu em 8 de junho de 793. Foi quando uma horda de homens desembarcou na ilha, vinda das gélidas ter­ras do norte. Com ferocidade e rapidez, eles saquearam o mosteiro e mataram os monges que cuidavam dele.

A invasão de Lindisfarne foi só o começo. Ela marcou o início da Era dos Vikings. Entre o fim do século 8 e a metade do século 11, boa parte da Europa seria aterrorizada pelos guerreiros escandinavos. Primeiro na costa britânica, depois no resto do continente, os europeus descobriram que nada era páreo para os vikings. Nem crenças celestes nem tampouco regras terrenas. Não foi à toa que seu nome se originou do termo nórdico vik, que se refere a alguém que espreita em uma baía – em outras palavras, um pirata. Pagãos, os vikings não diferenciavam camponeses de monges ou tesouros de relíquias cristãs. Para eles era tudo igual, o que chocou os cronistas europeus da época, que descreviam os vikings como “bárbaros” sem piedade.

Na verdade, o campo de batalha era uma espécie de paraíso para os nórdicos. O céu de sua religião, Valhala, nada mais era que uma eterna guerra. Eles acreditavam que, nessa espécie de Olimpo, os vencedores de cada dia eram convidados a comemorar com Odin – um de seus principais deuses – o sucesso obtido em mais uma luta.

Em suas incursões, além de saquear, os vikings faziam escravos. Mas os escandinavos também praticaram pacificamente o comércio e estabeleceram colônias em locais como França, Alemanha, Países Baixos e Rússia. “Os vikings não eram apenas senhores da guerra”, afirma a arqueóloga dinamarquesa Else Roesdahl no livro The Vikings (sem edição no Brasil). “Eles também eram exploradores que colonizaram terras até então desabitadas do Atlântico Norte – Ilhas Faroe, Islândia e Groenlândia –, e foram os primeiros europeus a chegar à América.” Apesar de os vikings terem superado o navegador Cristóvão Colombo em cinco séculos, a fama de implacáveis permanece sendo sua imagem mais forte.

Invasões bárbaras

Em vastas terras que hoje pertencem a Suécia, Dinamarca e Noruega, os vikings viviam da agricultura, da pesca e do comércio (de peles, madeira, trigo, peixes, metais e, eventualmente, de escravos). A sobrevivência era bastante complexa, porque os recursos eram escassos – e o frio, de doer. Ao contrário do que ocorreu em boa parte da Europa, os vikings nunca sofreram uma invasão romana e, por causa disso, eram bem diferentes dos outros povos do continente. Eles compartilhavam a mesma cultura, mas não formavam uma sociedade unificada. Boa parte deles vivia dividida em comunidades menores, cada uma comandada por um líder guerreiro. A falta de divisões políticas muito organizadas se refletiu nas invasões vikings da Europa: em vez de grandes exércitos obedecendo a um rei, muitas vezes as pilhagens eram feitas por pequenos grupos de homens (que depois dividiam o espólio entre si).

Navegando para longe de sua terra natal, os nórdicos se estabeleceram mais ao sul. Cidades como York, na Grã-Bretanha, e Dublin, na Irlanda, tiveram assentamentos vikings. Eles desembarcaram nessas regiões no século 9, aproveitando o clima mais ameno. O contato com as comunidades locais não era necessariamente violento. Afinal de contas, muitos vikings aceitavam se converter ao cristianismo. “Devemos lembrar que o nacionalismo extremo é um fenômeno histórico recente. Naquela época, a Inglaterra estava dividida em pequenos reinos (...) e os dinamarqueses eram rapidamente aceitos”, afirma o historiador sueco Holger Arbman no clássico Os Vikings.Na Europa continental, os vikings fizeram por merecer sua fama de guerreiros implacáveis. Aproveitando a versatilidade de seus barcos, eles navegaram pelo rio Sena até chegar a Paris. Em março de 885, chegaram, pilharam sem enfrentar grande resistência e, quando ficaram satisfeitos, foram embora. Esse cerco foi comandado por Ragnar Lodbrok. Fora isso, pouco se sabe sobre sua vida. 

Em novembro de 885, eles voltaram. Mas encontraram uma cidade bem mais protegida. Guaritas haviam sido construídas, assim como pontes móveis de madeira, usadas para impedir a entrada de navios inimigos. Teve início, então, uma especialidade medieval longe de ser exclusividade nórdica: o cerco. Como os exércitos cristãos, a cidade era cercada e eles simplesmente esperavam a rendição por falta de mantimentos. Agora, exigiram pagamentos para se retirar.

Os parisienses resistiram por quase um ano ao assédio de um dos maiores esforços vikings de guerra: 30 mil homens, que chegaram em 700 embarcações. Foram salvos pela chegada do exército do Sacro Império Romano. Quando o embate acabou, os vikings envolvidos nele se dispersaram. 

O líder dos nórdicos, Rollo, resolveu permanecer na região. Ganhou uma fatia de território na Normandia para se estabelecer e, em troca, deveria proteger os francos de novos ataques de seus compatriotas. Rollo mudou o nome para Robert e se converteu ao cristianismo – dando origem a uma linhagem que, mais tarde, conquistaria parte da Inglaterra. 

Os ataques à França, às ilhas britânicas e à Espanha eram realizados pelos vikings que viviam nas atuais Noruega e Dinamarca. Seu alvo preferencial era a Irlanda: na primavera, os ventos da costa norueguesa levavam os barcos até lá sem muito esforço. Os saques podiam durar até o outono, quando surgiam os ventos que traziam os nórdicos de volta para casa. Já os vikings do território que hoje corresponde à Suécia costumavam partir para o mar Báltico, onde pilhavam as atuais Polônia, Letônia, Lituânia e Rússia. Quando o objetivo era o comércio, eles iam ainda mais longe: navegando pelos rios Volga e Dnieper, chegaram até Constantinopla, então capital do Império Bizantino. Mas, por ter saqueado a cidade em 860, incendiando igrejas e casas, os vikings eram vistos com desconfiança por lá. Quando vinham comercializar seus produtos, eles tinham que deixar suas armas fora das muralhas de Constantinopla e não podiam entrar em grupos com mais de 50 pessoas.


Em túmulos vikings na Suécia, foram encontradas moedas cunhadas em Bagdá, o que indica que nórdicos percorreram muito chão – e água – para vender seus produtos aos árabes. Grande parte do que se sabe sobre os vikings, aliás, foi descoberto graças a seus túmulos. Os líderes nórdicos eram enterrados com tesouros, armas e objetos pessoais, incluindo os barcos (é por causa desse costume que sabemos tanto sobre as embarcações vikings, preservadas debaixo da terra). Em alguns sepultamentos foram encontrados corpos de mulheres – provavelmente concubinas, assassinadas e enterradas ao lado do amante morto.

América, ano 1000

Mas o que fez os vikings se distanciarem tanto de seus territórios? “Sugerem-se várias motivações para o surgimento repentino dos vikings em meados do ano 800. A superpopulação na terra de origem é vista como um dos fatores principais”, afirma o historiador britânico Mark Harrison no livro The Vikings: Voyagers of Discovery and Plunder (“Os vikings: viajantes das descobertas e pilhagens”, inédito no Brasil). O excedente populacional era agravado pela falta de recursos naturais da Escandinávia. Procurando novas terras, grupos noruegueses e dinamarqueses chegaram a ilhas próximas, como as Faroe. Depois, partiram para locais mais remotos, como a Islândia e a Groenlândia. Foi nessa grande ilha gelada que se estabeleceu Eric, o Vermelho, líder expulso da Escandinávia por assassinato. Seu filho Leif Ericsson, entretanto, não se contentou em ficar por lá e decidiu se aventurar no oceano Atlântico, liderando um grupo de guerreiros. 

A recompensa de Ericsson e seus homens foi descobrir a América. Um sítio arqueológico descoberto em L’Anse aux Meadows, na costa leste do Canadá, prova que eles fizeram isso por volta do ano 1000 – segundo os pesquisadores que trabalham no local, o assentamento de Ericsson deu origem à lendária Vinland, a terra das vinhas descrita no folclore viking. Mas os nórdicos não ficaram muito tempo no continente recém-encontrado. Os ataques dos povos locais e a dificuldade de sobrevivência fizeram com que, após três anos, o grupo voltasse para casa.

Na época em que Ericsson retornou ao lar, a fúria expansionista dos vikings começava a entrar em declínio. Uma das últimas grandes batalhas em que eles se envolveram foi na Irlanda, em 1014. Brian Boru, rei irlandês, pretendia unificar suas terras e entrou em conflito com o líder viking Sigtrig Barba de Seda. O conflito deu origem à batalha de Clontarf, nos arredores de Dublin. Havia vikings dos dois lados, e os homens de Boru despacharam os de Sigtrig em direção ao mar. Em 1066, o duque da Normandia, William, conseguiu expulsar os vikings da Danelaw, região que os nórdicos habitaram durante quase dois séculos na Inglaterra. Na Escócia, contudo, muitos duques descendentes de escandinavos permaneceram no poder.

O fim dos ataques vikings coincidiu com o avanço do cristianismo entre eles. Nas ilhas britânicas, os nórdicos que não foram expulsos acabaram se adaptando à cultura e à religião local (na Inglaterra, por exemplo, é raro encontrar túmulos pagãos construídos depois do ano 950). Ao fim do século 10, muitos moradores da própria Escandinávia já eram cristãos. Com a nova religião, o ímpeto por conquistas se dissipou. Mas jamais foi esquecido, permanecendo em lendas contadas até hoje nos locais onde houve colônias vikings. 

Sangue, palavras, bacalhau

A influência viking na Europa não se resume à Escandinávia

Qualquer um que aprenda inglês básico está, mesmo sem saber, ajudando a preservar a herança viking. Diversas palavras do idioma tiveram origem a partir das invasões nórdicas. Thursday, quinta-feira, significa “dia de Thor”, uma referência a um dos mais conhecidos deuses vikings. 

A influência está presente ainda em palavras como husband (“marido”), sister (“irmã”), knife (“faca”) e egg (“ovo”). Além da língua inglesa, a tradição viking se perpetuou no nome de algumas cidades européias. Um caso célebre é Dublin, capital da República da Irlanda: no século 10, os vikings ocupavam uma região irlandesa que chamavam de Dubh Linn. 

Mas uma das principais contribuições dos vikings fora da Escandinávia corre nas veias de moradores do norte e nordeste da Inglaterra. Uma pesquisa feita com o sangue de voluntários pelo canal britânico BBC, em 2001, demonstrou que muitos ingleses possuem semelhanças com noruegueses no cromossomo Y (aquele que somente os homens carregam). Essa é mais uma prova de quão profunda foi a integração dos vikings com seus vizinhos do sul – em vez de apenas pilhar, eles foram assimilados e se incorporaram às famílias locais. 

Na Dinamarca, a atual rainha, Margrethe II, nem precisa fazer exame de DNA para provar sua ascendência viking. A ocupante do trono dinamarquês é descendente direta de Gorm, o Velho, líder viking que viveu no século 10. Ela consegue traçar seus antepassados em uma linhagem que cobre mais de mil anos.

E há importante colaboração na cultura portuguesa, com certeza: o bacalhau. Os vikings não usavam sal, apenas secavam os peixes ar livre. Como eles eram também comerciantes, durante o período das invasões, sua especialidade chegou à Península Ibérica - e os bascos, por volta do ano 1000, foram os primeiros a salgar o peixe. Quando todo mundo se converteu, os portugueses, bascos e outros povos puderam pescar em suas costas, desenvolvendo sua indústria náutica. Isso durou até os anos 1970 - desde então, bacalhau só pode ser produzido pelos próprios nórdicos.

Eles nunca foram chifrudos

Esqueça o chapéu de chifres nem beber na caveira dos inimigos - mas caneca de chifres eram comuns



Em nenhuma imagem desta matéria você viu chifres nos elmos dos vikings. Não que a gente tenha se esquecido deles: a tradicional imagem de guerreiros nórdicos usando chifres é pura ficção. 

Há registros de que os celtas e alguns povos germânicos usavam capacetes com chifres. Mas sua função era apenas cerimonial, enfeitando a cabeça de sacerdotes. Os vikings podem até ter utilizado ornamentos semelhantes em eventos religiosos. 

Mas, durante lutas, chifres teriam sido pouco práticos – acrescentariam peso inútil aos capacetes e seriam fáceis de arrancar. A quantidade pequena de capacetes vikings encontrados, aliás, indica que nem todos eles usavam esse equipamento – talvez só os homens da linha de frente. 

Mas de onde surgiu, então, a relação entre chifres e vikings? Em 1820, numa edição do livro A Saga de Frithiof, que conta lendas escandinavas medievais, um pintor sueco se baseou em indumentárias germânicas para retratar os vikings. As ilustrações trazem os guerreiros usando capacetes com chifres (e perucas por baixo deles). Outra suspeita é de que a confusão tinha se espalhado graças a uma obra do compositor alemão Richard Wagner. Encenações de O Anel dos Nibelungos (série de quatro óperas escritas entre 1848 e 1874) representavam os hunos como homens que vestiam peles e usavam elmos chifrudos. Isso teria ajudado o imaginário europeu a atribuir essas características a qualquer povo considerado “bárbaro”.



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