Fabio Marton
Do vapor estacionado às margens do Rio Nilo, na
Ilha de Aba, desceram 200 soldados, armados com fuzis de repetição Remington,
um canhão e duas metralhadoras. Eles se dividiram em duas companhias, que foram
guiadas por comerciantes locais até seu destino, a vila onde morava o clérigo
Muhammad Ahmad bin Abd Allah. Ao chegarem lá, entraram na casa de seu alvo e
atiraram no primeiro homem que encontraram. Era só um convidado. Dos arbustos
nas imediações, saltaram sobre os soldados duas centenas de seguidores de
Ahmad, esfarrapados e armados com pedras, paus, enxadas. As poucas armas de
verdade eram um luxo, e ainda assim completas relíquias para aquele agosto de
1882: lanças, espadas e escudos.
O uso que os soldados profissionais encontraram para sua tecnologia superior
foi atirar a esmo, atingindo a todos. Eles não agiam como uma companhia. Seu
comando estava dividido em dois, porque haviam recebido a promessa de promoção
imediata a quem capturasse o religioso. O moral era baixíssimo, e só pensavam
em voltar para casa. "No Exército egípcio, estar no Sudão era visto como
uma forma de punição, e às vezes era mesmo", afirma o major e historiador
militar Robert Rossi, professor da Universidade de Comando e Equipe Geral em
Fort Leavenworth, Kansas, Estados Unidos.
Em minutos, a onda humana paleolítica deixou 120 egípcios jazendo na
lama, mortos ou incapacitados. Outros nove foram capturados. Os sobreviventes,
obviamente, foram aqueles que conseguiram fugir de volta para o barco.
Muhammad Ahmad conseguia sua primeira vitória. Ele a compararia à
Batalha de Badr, em 624, na qual o profeta Maomé venceu uma força três vezes
maior - e que também foi sua conquista inaugural. Era uma ação de propaganda:
"Ele cuidadosamente comparava suas ações à do Profeta", afirma o
major Rossi.
O escolhido
Dois meses antes, Ahmad havia feito circular cartas
com uma mensagem perturbadora. Ele dizia ser o Mahdi. É mais ou menos afirmar
ser o segundo Cristo. "De acordo com os hadiths [textos sobre a vida de
Maomé], o Mahdi vai aparecer quando o final do mundo for iminente, e preencher
a terra com justiça e piedade", diz o historiador Kim Searcy, da
Universidade Loyola de Chicago.
O Mahdi é o parceiro de Cristo em sua segunda vinda. Na escatologia
islâmica, ele e Jesus (chamado Isa no Islã) enfrentarão o falso profeta Masih
ad-Dajjal, acabando com o mal, unificando o mundo em paz e reinando até o dia
do Juízo Final.
No Islã, Jesus não é Deus - essa ideia é considerada uma profunda
heresia na religião. Tão grande que é considerada uma das razões para Maomé ter
recebido sua revelação, fundando uma nova religião para corrigir os erros dos
cristãos. O Jesus islâmico é humano, não morreu na cruz, rejeita o cristianismo
e é o segundo profeta mais importante - após, obviamente, Maomé. Ainda hoje, os
guerreiros apocalípticos do Estado Islâmico acreditam que uma batalha entre
eles e os Estados Unidos será o sinal para que Jesus volte.
A declaração de Ahmad soou ridícula para os clérigos islâmicos na
capital sudanesa, Cartum. Mas alarmou as autoridades egípcias, que dominavam o
Sudão havia seis décadas. Ahmad já era conhecido por sua retórica puritana e
antiotomana, conclamando os fiéis verdadeiros do Islã a lutar contra os
"turcos", os desviados decadentes que não aplicavam a sharia (leis
islâmicas) com rigor e se aliavam a infiéis. Em verdade, lutava contra o
governo do Egito. Segundo a historiadora Patrícia Teixeira Santos, da
Universidade Federal Paulista (Unifesp), "o Egito era ligado ao Império
Otomano, mas tinha uma enorme independência regional. O Sudão era a base de sua
economia, de onde vinham marfim e escravos".
Mas havia algo de verdade no jeito como Ahmad se
referia a eles. "Baseado na composição étnica do governo egípcio, essa
descrição era bastante precisa", diz Rossi. "A maior parte do governo
colonial no Sudão era composta de não egípcios. A linguagem oficial do governo
sudanês era o turco. Os funcionários coloniais empregados pelo Egito vinham do
mundo otomano."
Mas isso era também uma manobra diplomática. Segundo o major Rossi,
"Muhammad Ahmad não declarou os egípcios seus inimigos. Era mais fácil
apontar os turcos como uma ameaça à comunidade islâmica, de diversas formas:
eles eram não árabes, dominavam um império e suas práticas violavam as regras
islâmicas (numa interpretação estrita): eles fumavam em público e usavam
infiéis para controlar os fiéis. Contra eles, uma jihad podia ser
justificada".
Antes do ataque, o governo egípcio havia enviado Abu Saud, um conhecido
de Ahmad, para convencê-lo a ir para a capital, Cartum, ser interrogado. O Mahdi
o mandou de volta. Seria Saud a comandar as tropas na fracassada ofensiva de
dois meses depois - o que fez do conforto de seu navio.
Self-made man
Muhammad Ahmad inventou a si próprio. Nasceu numa família de fabricantes
de barcos, no então mais extenso e complicado lugar do continente. "O
Sudão era gigantesco, o maior país da África até 2010", afirma Patrícia
Teixeira Santos. "É importante perceber a grande diversidade étnica e
populacional que existe ali."
Essa diversidade colocava alguns povos contra outros. O Rio Nilo estava
no centro da economia do Sudão e seu maior produto de exportação eram escravos.
Os escravos sudaneses eram cristãos e animistas capturados no sul do país pelos
árabes do norte. Depois da perda dos clientes na América, os egípcios haviam se
tornado os principais compradores. Eles usavam escravos em seus tradicionais
regimentos de mamelucos, soldados escravizados, mas de alto prestígio. Eles
davam com uma mão e tiravam com a outra: "O governo egípcio impôs pesados
impostos na população do norte e isso resultou na maioria sendo forçada a se
envolver em um aspecto ou outro do negócio de escravos para pagar esses
impostos", afirma o professor Kim Searcy.
Em 1877, sob pressão das potências ocidentais, o Egito aboliu a
escravidão, com a regra se aplicando à sua colônia, o Sudão. Famílias que
dependiam do negócio, como indiretamente a de Ahmad, foram à falência. O país
entrou em depressão econômica. "Os conflitos que surgem no século 19 vêm
da desestruturação das atividades econômicas de tráfico de escravos e das
relações de poder tradicional a partir da entrada da Inglaterra", afirma a
historiadora Patrícia Teixeira Santos. "Com ela, chegam as estruturas
comerciais e religiosas europeias." Isso criou um clima de revolta no qual
as pregações apocalípticas do autointitulado Mahdi soariam atraentes.
Ahmad aprendeu a ler sozinho e decorou o Corão inteiro. No Islã, não
existe realmente a posição de sacerdote - qualquer pessoa educada pode se
tornar um imã, xeique ou ulemá, entre os vários títulos para aqueles que
estudam os escritos e conduzem as cerimônias. O critério é ser aceito por
outros religiosos e pela congregação. Assim, isso bastava para que ele se
tornasse oficialmente um clérigo.
Em 1878, o religioso entrou em conflito com seu xeique porque ele havia
permitido dança e música em cerimônias de circuncisão. Ele achava um absurdo um
xeique local ter a pretensão de "abolir a sharia". Eles tentaram se
reconciliar, mas, ao final das contas, Ahmad acabou fundando sua própria
congregação. Que era pacífica, mas fundamentalista. "Suas pregações
advogavam por uma interpretação literal do Corão e uma observância estrita da
lei e valores islâmicos, que permitem a escravidão", afirma Rossi.
"Também um modo de vida devoto e de desprezo para aqueles considerados
desprovidos de devoção verdadeira. A vida terrena não tinha qualquer
consequência exceto como um teste para determinar quem entraria no
paraíso."
O Islã não rejeita a escravidão (como o cristianismo também não, melhor
não se esquecer). Voltar às condições da época do Profeta, que fez escravos,
incluía liberá-la - assim como e pelas mesmas razões que o Estado Islâmico faz
hoje. Isso era extremamente atraente aos árabes sudaneses, não era a mensagem
inteira. Ahmad acabou por rejeitar a autoridade egípcia e otomana, que não se
encaixava em sua visão estrita de uma vida pura. Egípcios e otomanos eram, para
ele, corruptos, desviados, incapazes de liderar uma verdadeira comunidade
islâmica.
Nasce o Estado Islâmico
Ahmad podia ter origem humilde, mas era um exímio propagandista.
Percebendo que não teria a mesma sorte no inevitável contra-ataque egípcio,
retirou-se com seus fiéis da Ilha de Aba. Afirmou que havia tido uma visão para
levá-lo à "Jebel Masa" - esse é o nome de uma montanha que aparece na
profecia islâmica. Em verdade, levou sua trupe para Jebil Gedir, uma montanha
não relacionada na província de Kordofan.
Lá ele enfrentaria 1 400 egípcios. Novamente, combatia armas de fogo com
instrumentos medievais, quando não da Idade da Pedra. Mas, graças ao sucesso de
suas ações de propaganda, seu Exército havia aumentado para 8 mil homens. E
também contava com a simpatia da população local, que formava uma rede de
informantes que o permitia conhecer cada passo da coluna inimiga. Em 7 de
dezembro de 1881, os egípcios caíram numa emboscada e tiveram o mesmo destino
dos 200 da ilha, humilhados por uma onda humana quase desarmada, mas muito mais
inspirada que eles.
Em maio do ano seguinte, seria feita uma terceira
tentativa. Seis mil soldados foram enviados para Jebel Masa. Em junho,
encontram com as forças mahdistas - e acharam engraçado. Toparam com um pequeno
grupo, e notaram como pareciam famélicos, vestidos em trapos e armados com
pedras e porretes. Decidiram então acampar por ali mesmo, sem nem se preocupar
em deixar sentinelas acordados. À noite do dia 7, outro tsunami de fanáticos
desorganizados caiu sobre eles, com o mesmo desfecho de antes.
Desta vez, porém, houve uma diferença nos resultados: o Exército
mahdista se saiu com um enorme butim, em armas, uniformes, munições,
suprimentos e, o mais notável, soldados - os sobreviventes do Exército egípcio
se juntaram a eles. E essa seria uma prática constante de Ahmad: ele oferecia o
perdão a qualquer soldado que prestasse juramento.
A revolta espalhou a insurreição - e a guerra - por todo o país.
"Forças leais ao Mahdi começaram a se formar e atacar forças do governo,
mesmo sem sua presença física", afirma o major Rossi. "O uso de
emissários para espalhar sua mensagem e o sucesso militar de seus seguidores
começaram a dar frutos."
Humilhação europeia
A vitória se seguiu a um ataque à cidade de Al Ubbayyid (or El Obeid). O
Mahdi agora tinha canhões e fuzis, mas isso não era suficiente para tornar a
invasão segura. Ele instalou um cerco, para fazer as forças de defesa desistir
por fome.
O Exército do Egito deu sua quarta cartada. Buscou ajuda estrangeira,
com o coronel inglês aposentado William Hicks, veterano de batalhas na Índia e
Abissínia (atual Etiópia). A ele foi dada uma tropa de 10 mil egípcios e vários
oficiais europeus, armados com o melhor que o Egito podia comprar de seus
aliados ocidentais.
Hicks podia ser experiente, mas seu Exército não era. Eles eram
veteranos da revolta de Urabi, entre 1879 e 1882. A revolta, em verdade um
golpe militar que pôs o general Ahmed Urabi no poder, levou à ocupação do Egito
pelos britânicos para contê-la. Na época da revolta mahdista, o Egito
continuava a ser formalmente independente, mas os britânicos praticamente
mandavam no vice-rei Muhammed Pasha, que havia pedido sua ajuda contra os
rebeldes.
No meio do caminho, Hicks recebeu a notícia de que El Obeid já havia
caído. Mas, com a arrogância de um militar do império mais poderoso da
História, decidiu prosseguir para aniquilar a ameaça. Ahmad a essa altura
contava com uma rede de espionagem e a intensa lealdade do que já era a maioria
dos sudaneses. Os guias da expedição eram na verdade agentes duplos. Conduziram
Hicks e sua tropa para uma emboscada numa floresta a 30 quilômetros do destino.
Eram 40 mil mahdistas, e um número grande de armas de fogo. Hicks foi o
último a cair. Após esvaziar seu revólver, recorreu à espada para se defender.
E terminou trespassado pela lança do general inimigo, Mahommed Sherif. Dos 10
mil da coluna de Hicks, apenas 300 sobreviveram.
A batalha de El Obeid, em 5 de novembro de 1883, não desencorajou os
egípcios de enviarem mais militares britânicos aposentados para tentar salvar a
situação. Do outro lado do país, em Suakin, onde fica o porto mais importante
do país, suas forças estavam sitiadas. O major Valentine Baker foi enviado com
uma força de 3 500 homens contra o general Osman Digna.
Ainda que o objetivo dessa vez fosse modesto e local, o resultado não
foi melhor que com Hicks. Em 4 de fevereiro de 1884, a tropa egípcia liderada
por europeus mostraria outra vez a precariedade do Exército egípcio - e o
terror que seus inimigos inspiravam. Ao encontrar uma força de meros mil
mahdistas, eles se desesperaram ao primeiro disparo e se puseram a correr. Os
rebeldes os perseguiriam e apenas 700 voltariam para casa - incluindo o major
Baker.
Os ingleses desafiam
Ainda que Hicks e Baker não fossem mais parte do Exército britânico, a
derrota causou furor em seu país natal. A facção imperialista no Parlamento,
que clamava por novas conquistas, exigiu a intervenção imediata. O general
Gerald Graham foi enviado para salvar Suakin.
Contra uma força de 4 500 ingleses disciplinados, as táticas mahdistas
não puderam fazer muito. Eles não conseguiram emboscá-los, como antes. Tiveram
que se entrincheirar e lutar de igual para igual. Após uma troca de tiros de
artilharia, os canhões dos rebeldes, operados sem a mesma experiência, acabaram
destruídos. Eles tentaram então atacar de suas trincheiras, não numa onda
humana, mas em pequenos destacamentos. Apesar da cautela, 2 000 deles seriam
mortos contra apenas 30 britânicos. Mas a grande maioria, 8 mil outros,
conseguiu se retirar com sucesso.
Os britânicos não perseguiram os mahdistas e se conformaram em manter a
capital. Em 3 de abril, a força expedicionária de Graham deixou a cidade.
Suakin não seria capturada, mas a província permaneceria sob controle dos
rebeldes.
Vitória final
Após o pequeno revés em Suakin, quase todo o Sudão pertencia ao Mahdi.
Mas uma vila resistia, e era o Grande Prêmio: a capital colonial Cartum. Nela
também havia um inglês.
Os egípcios e seus mandachuvas britânicos haviam jogado a toalha. O
general Charles George Gordon chegou a Cartum em 19 de fevereiro de 1884, com
ordens para evacuar a cidade. Mas decidiu defendê-la. Afirmava que estava
determinado a "esmagar o Mahdi".
Esse excesso de confiança talvez viesse do fato que Cartum parecia
facilmente defensável. Dois terços de suas bordas eram cercados pelos rios Nilo
Branco e Nilo Azul, que se unem para formar o Nilo no então ponto mais ao norte
da cidade. Gordon contava com oito vapores de guerra, um luxo a que o Mahdi não
podia se dar. Ao sul, acreditava poder usar sua vantagem em artilharia para
mantê-los sob controle. Gordon também tinha experiência em cercos, obtida em
suas campanhas na China, que deram a ele uma reputação legendária.
Mas Gordon não entendia seu inimigo. Para ter uma ideia, antes de chegar
a Cartum, ele havia mandado cartas para Ahmad com a oferta do governo de uma
província. Com elas, ia um fez - o estereotípico chapéu cilíndrico turco, então
na moda e usado amplamente pelos europeus em suas aventuras coloniais.
"Turco", já vimos, era o nome como o Mahdi se referia a seus inimigos
- o presente sincero parecia uma provocação, um pedido para trair tudo em que
acreditava e, literalmente, botar o chapéu do inimigo. "Ahmad recusava as
honras e o butim trazidos por seus seguidores. Vestia-se com um jibbah [túnica
sudanesa] comum, comia frugalmente e vivia uma vida simples. Acreditava no que
estava fazendo e se recusava a trair seus princípios", diz Rossi.
As forças mahdistas chegaram a Cartum em março. A cidade já estava
sitiada na prática, com toda a região no entorno sob o controle dos rebeldes -
que nem podiam mais ser chamados assim, porque haviam estabelecido um Estado,
com impostos, ministros, controle de finanças e até serviços sociais, todos
copiados do que foi criado pelo profeta Maomé no século 7.
O general havia colocado a si próprio numa armadilha mortal. Como em El
Obeid, o Mahdi decidiu esperar para que a fome fizesse seu trabalho. Até abril,
quando o cabo telegráfico foi cortado, o general Gordon pediu por reforços, que
foram recusados, já que ele estava descumprindo ordens. Mas a notícia de um
britânico marcado para morrer chegou à imprensa em Londres e causou furor. A
rainha Vitória interveio em pessoa. A seu pedido, duas expedições de resgate
foram enviadas. A primeira foi em setembro, mas acabou repelida. Outra chegou
em janeiro e entrou em confronto com as forças mahdistas, conseguindo avançar
com sucesso.
Mas isso serviu apenas como sinal para o ataque. Em
26 de janeiro de 1885, 50 mil mahdistas invadiram Cartum andando através dos
rios, que estavam em nível baixo naquela época do ano. Foi um massacre. A
cabeça de Gordon foi levada a Muhammad Ahmad, que não recebeu o presente com
muita gratidão, porque tinha respeito pelo inimigo e havia dado ordens para
capturá-lo vivo.
A expedição britânica chegou a Cartum com dois dias de atraso e deu
meia-volta. No dia 30, o Mahdi adentrou a cidade pessoalmente e rezou na
mesquita, como havia prometido nas correspondências com Gordon. E a abandonou.
Com seu desdém por tudo que era relacionado ao governo colonial, preferiu criar
outra capital para si, do outro lado do rio - Cartum havia sido fundada pelos
egípcios em 1824. Não importava: imperialistas europeus e egípcios foram
arrasados. O Sudão não pertencia mais aos "turcos".
O legado
Muhammad Ahmad morreu no auge de sua glória. Em 22 de junho, ele
padeceria em sua nova capital. Seria vítima de tifo, contraído nas campanhas.
Tinha apenas 40 anos. O governo foi passado para Abdallahi ibn Muhammad, que
passou a se chamar de "califa". A palavra quer dizer
"sucessor" em árabe, como os sucessores do Profeta. É o título dado
ao líder espiritual e material de todos os islâmicos do mundo - ao menos é a
pretensão.
Abdallahi era um tirano brutal, sem o carisma de Ahmad. Governaria por
14 anos, levando o Estado mahdista às portas do século 20. Resistiu a diversas
incursões inimigas, que tomaram regiões uma por uma, em pequenas mordidas. Eram
britânicas, italianas, francesas e até os vizinhos africanos mas cristãos da
Etiópia. Acabou morto por uma coluna egípcia controlada por um britânico, em 24
de novembro de 1899. A única vez em que a tática funcionou.
Contamos a história de Muhammad Ahmad, um homem que se acreditava o
arauto do Apocalipse. A História provou que ele não era o Mahdi. Jesus também
não apareceu para ajudálo a liderar tropas. Mas é fácil ver como acreditar que
ele era o escolhido de Alá era completamente plausível para os sudaneses
islâmicos durante sua fase de vitórias.
Em tudo isso, não fizemos nenhuma comparação direta com extremistas
islâmicos modernos. O que seria uma tentação fácil: as semelhanças com o Estado
Islâmico são incríveis, afinal. Um clérigo - Abu Bakr al-Baghdadi - torna-se um
líder de um estado baseado numa interpretação literal do Corão, tentando
recriar a vida como na época do profeta Maomé, o que inclui recriar a
escravidão. Suas armas foram conquistadas dos inimigos, que são governos de
países islâmicos aliados dos ocidentais, vistos como ilegítimos e capachos. Abu
Bakr não se declarou Mahdi, mas califa, e acredita que o Mahdi e Jesus voltarão
para auxiliá-lo numa batalha contra os Estados Unidos.
Mas os terroristas modernos vêm de uma genealogia não relacionada.
"A história do Mahdi nada tem a ver com os movimentos modernos do chamado
extremismo islâmico", afirma Patrícia. "Ela e várias outras revoltas
islâmicas do século 19 estão lidando com um fator novo na época, que era a
entrada das potências europeias com seus projetos coloniais. Elas se inserem
num movimento de contestação dessa forma de inserção da África e da Ásia na
geopolítica como colônias subalternas das potências europeias."
Kim Searcy concorda: "A Revolta Mahdista no Sudão não é o começo da
era atual do Islã político ou do extremismo islâmico". E explica a origem
dos movimentos modernos: "Em minha opinião, há vários fatores que podem
ser atribuídos ao terrorismo atual, como a natureza arbitrária de como as
potências europeias dividiram o Oriente Médio após a Primeira Guerra, uma
reação aos regimes corruptos e ineptos da região e à presença militar dos Estados
Unidos e da União Europeia na região pelos últimos 20 anos".
O extremismo islâmico tem origens na Irmandade Muçulmana, fundada no
Egito em 1928 - que não era um movimento terrorista. Essa parte data dos anos
1980. Xomeça pela adoção por fundamentalistas islâmicos das táticas terroristas
usadas por movimentos nacionalistas e completamente seculares, principalmente a
Organização para Libertação da Palestina. E existe num mundo diferente. "O
EI faz recrutamento na própria Europa entre a juventude marginalizada dos
imigrantes", diz Patrícia Teixeira. "A forma de recrutar é muito
parecida com movimentos paramilitares de outras partes do mundo, como os
narcotraficantes, que se direcionam a uma juventude marginalizada e sem
perspectiva, que não encontra formas de se enquadrar na cidadania."
Muhammad Ahmad parece não inspirar corações e mentes nos extremistas de
hoje. No mundo islâmico, exceto pelo Sudão, pouco é mencionado. Afinal, ele
obviamente não era o Mahdi. E perdeu. Mas sua história ilustra os perigos do
imperialismo e de não conhecer o próprio inimigo, a ignorância ocidental da
mentalidade dos extremistas islâmicos que combate.
Os combatentes
Britânicos
Os britânicos usavam uniforme cáqui ou vermelho, com o estereotípico pith helmet, um capacete feito da fibra de uma planta indiana coberta com tecido. Oficiais e cavalaria eram armados com espadas - ambas funcionais, e, de fato, a arma principal no combate montado. A infantaria carregava o fuzil Martini-Henry, um tanto antiquado, que dava um tiro só, substituído na década de 1890 pelo Lee-Metford, de dez tiros.
Mahdi
Os guerreiros mahdistas chamavam a si mesmos de "ansar", nome dado aos membros do Exército do profeta Maomé. No começo, eram um bando confuso de esfarrapados, mas, a partir da batalha de El Obeid, passaram a usar uniformes brancos, uma cor relacionada à pureza no Islã, baseados nas vestimentas tradicionais sudanesas. As armas eram qualquer coisa em que conseguissem pôr as mãos. Sem treinamento formal - exceto por soldados egípcios que viraram a casaca -, o que contava mesmo eram os números superiores.
Egípcios
Os egípcios tinham casacas ocidentalizadas, que seguiam a moda francesa, não britânica - isso se refletia no azul do oficialato. Usavam armas de países ocidentais, inclusive fuzis de repetição americanos, muito mais modernos que as armas inglesas. Era um Exército multiétnico, formado de gente de diversos países, inclusive do próprio Sudão. O problema era a falta de motivação: ganhavam mal, a maioria não queria estar no Sudão, e às vezes até se identificavam com o Mahdi.
Outros Mahdis
Muhammad Ahmad está longe de ser o
único a se denominar o Mahdi da profecia. No século 11, o marroquino Abdallah
Muhammad Ibn Tumart assumiu o título, pegou armas e derrotou a dinastia
almorávida na Andaluzia e norte da África, fundando um império que duraria
quase 150 anos. Décadas antes, em 1844, Ali Muhammad Shírází também disse ser o
Mahdi, sendo morto por um pelotão de fuzilamento por isso. Mas os resultados
foram positivos: ele se tornou o fundador da religião Ba¿hai, que prega a paz
entre religiões, a aceitação da ciência e a igualdade entre os gêneros. E há
mahdis vivos: o malaio Ariffin Mohammed afirma ser não só o Mahdi (mas só vai
cumprir a profecia na próxima encarnação) mas também a reencarnação de Buda,
Jesus, Maomé e do deus indiano Shiva. Seu culto, que foi banido na Malásia,
incluía venerar uma chaleira gigante, do tamanho de um prédio de dois andares.
Hoje em dia, mais de 3 mil pessoas estão presas apenas no Irã por se dizerem
mahdis.
Um comentário:
The "Final Win" was at Omdurman on 2 September 1898 and at Umm Diwaykarat 24 November 1899.
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