sexta-feira, 24 de março de 2017

No tempo dos corsários e piratas

Maria Inês Zanchetta



Em maio de 1701, quem percorresse as margens do rio Tâmisa, em Londres, depararia com um espetáculo macabro: cadáveres pendurados em estacas balançando com o movimento das águas. Eram corpos de piratas que tinham sido condenados a morrer na forca. A inusitada exposição destinava-se a chamar a atenção dos marinheiros para o que lhes aconteceria caso fossem capturados como piratas. A terrível advertência fazia parte dos esforços da Inglaterra em por fim à pirataria – cujo governo, por sinal, a estimulara cem anos antes – e assim tranqüilizar os comerciantes que viam seus negócios ameaçados pelos ladrões dos mares. Entre os desconhecidos corpos de marinheiros que pendiam em Londres naquela primavera do início do século XVIII, um ao menos era de um personagem importante: o capitão da marinha William Kidd, que em 1695 desertou com navio e tudo, tornando-se um dos mais célebres piratas da época.

Preso em Boston, na então colônia inglesa da América do Norte, o escocês Kidd foi julgado e executado em Londres. Na verdade, a pirataria não era propriamente uma novidade na Europa daqueles notáveis tempos de expansão econômica e marítima. Tão antiga quanto a própria história da navegação, a pirataria se fez presente desde os tempos antigos, passando pelo Egito e Grécia até o império romano. Depois, durante a Idade Média, teve nos vikings nórdicos seus mais ferozes praticantes. Além deles, também ingleses, franceses, holandeses, irlandeses e árabes dedicaram-se ao ofício pouco nobilitante de despojar de suas riquezas navios em alto-mar. Por representarem um transtorno à boa marcha dos negócios por via marítima, os piratas sempre estiveram sujeitos a severas punições.

Apesar disso, houve época em que a atividade chegou a ser estimulada por vários governos. No século XVI, os ingleses sentiam-se ameaçados pela Invencível Armada espanhola, montada graças ao ouro saqueado das Américas. Em 1567, com suas naus equipadas com o que havia de mais moderno em matéria de armas de fogo, a Espanha acabou por bloquear o tráfego comercial marítimo entre as Ilhas Britânicas e os Países Baixos. Para dar o troco aos espanhóis, a Inglaterra criou e manteve durante vinte anos uma verdadeira frota mercenária: os corsários, navegadores aos quais outorgavam cartas de corso (do latim cursus, viagem por mar). Tratava-se, na verdade, de autorizações para roubar: as cartas permitiam que eles abordassem os galeões espanhóis que traziam para a Europa as riquezas das colônias do Novo Mundo.

O cenário era o mar das Antilhas, na América Central. “A vantagem para os ingleses é que as frotas que levavam os tesouros espanhóis tinham data marcada para sair e rota conhecida, o que facilitava o trabalho dos piratas. Mesmo assim os combatentes eram ferozes, pois as frotas eram sempre escoltadas”, explica a historiadora Janice Theodoro da Silva, da USP, especializada em América colonial. “O investimento que a Inglaterra fazia na pirataria tinha retorno certo”, avalia a historiadora. “Embora as despesas fossem enormes, o butim era compensador”. A rigor, a Inglaterra não era a única nação cujo comércio exterior se ressentia da presença espanhola nos mares – e por isso recorria aos corsários. A França, por exemplo, também se valia dessa arma.

A diferença é que a Inglaterra soube utilizá-la como ninguém, até porque alguns dos mais célebres piratas eram súditos de Sua Majestade Britânica. O melhor exemplo disso foi o audacioso Francis Drake, que entre 1577 e 1580, com o apoio da rainha Elizabeth I, realizou uma viagem de circunavegação do mundo em seu navio The Golden Hind, passando pelo estreito de Magalhães, que liga no sul da América o Atlântico ao Pacífico. Já que estava mesmo por ali, aproveitou para saquear a costa do Pacífico e capturar o ouro, a prata e as pedras preciosas dos galeões espanhóis. Ao regressar à Inglaterra, foi recebido com todas as honras pela rainha e condecorado com o título de sir.

O suporte da coroa britânica à pirataria enfureceu de tal forma o rei Felipe II da Espanha que acabou declarando guerra aos ingleses. Foi uma decisão que mudou o curso da história européia. Pois em 1588, há quatrocentos anos, a Invencível Armada, com seus 133 navios, foi destroçada – e essa foi uma das causas do declínio político e econômico da Espanha no mundo e da ascensão da Inglaterra. Corsários, flibusteiros, bucaneiros ou pura e simplesmente piratas, financiados por governos ou por ricos comerciantes, tinham sempre um único objetivo, como, aliás, todo ladrão que se preze, em alto-mar ou terra firme: fazer fortuna pilhando a fortuna alheia. No entanto, como em tudo na vida, nem sempre eram bem-sucedidos.

Qualquer marinheiro que embarcasse num navio pirata sabia, por exemplo, que sem presa não haveria paga. Por isso, era uma gente disposta a tudo. Quando o capitão do navio finalmente conseguia arrebanhar a tripulação de que precisava para zarpar, estabelecia as regras para a divisão do produto do saque. Os interessados ficavam então sabendo que, terminada a pilhagem, as mercadorias seriam vendidas; calculado seu valor total, deduziam-se as despesas de viagem (um terço era pago a quem havia financiado o, digamos, empreendimento) e o restante era repartido. Ao capitão, naturalmente, cabia a parte do tubarão – algo como um terço do produto do saque; os marinheiros de primeira viagem ficavam com os trocados.

Mas, veterano ou novato, o marinheiro que primeiro gritasse “vela à vista” receberia 100 moedas. Se houvesse combates e algum marinheiro saísse mutilado, seria indenizado: quem perdesse um olho ou um braço recebia 600 moedas; a perda de um dedo (do pé ou da mão) era recompensada com 100 moedas. Tais obrigações deviam ser cumpridas à risca pelo capitão; em contrapartida exigia-se que os marinheiros não se acovardassem nem se embriagassem na iminência de uma abordagem – o que, apesar de tudo, era comum. Para saber se um marinheiro estava ou não bêbado, submetia-se o suspeito à prova de andar em linha reta – e não se admitia culpar o balanço do mar pelos ziguezagues.

Os piratas embarcavam nessa vida movidos pela ganância, mas suportavam o dia-a-dia a bordo movidos a álcool, rum de preferência. Conta-se até que certa vez uma navio de piratas demorou três dias para capturar um galeão por falta de homens sóbrios. Mas havia ocasiões em que era permitido festejar e beber até cair. Isso acontecia quando os navios atravessavam determinados marcos geográficos como o estreito da Flórida (que separa o mar das Antilhas do golfo do México) ou a linha do equador (marco imaginário que divide o hemisfério norte do hemisfério sul). Então um dos piratas se vestia de rei e, acompanhado de sua corte, todos vestidos de forma espalhafatosa, batizava os que nunca haviam cruzado a fronteira. O batismo variava desde o afogamento simulado num barril até um passeio sobre uma tábua suspensa na proa e então mergulhada na água, uma, duas, três vezes. Depois, os calouros que resistissem a essa verdadeira tortura recebiam um apelido que lhes dava a tripulação. A cerimônia, por assim dizer, terminava com uma batalha de água que se espalhava pelo navio e geralmente com homéricos porres. Esse costume talvez tenha dado origem às festas que os navios de passageiros promovem até hoje para comemorar a travessia do equador.

Mas a vida no mar nas regiões tropicais estava longe das lendas que a literatura e o cinema se encarregariam de difundir. As ilhas onde os piratas aportavam podiam ser ensolaradas, com praias cobertas de palmeiras e cachoeiras de águas límpidas. Mas, apesar do cenário paradisíaco, os ladrões do mar costumavam padecer – e muitas vezes morriam – de tudo quanto fosse doença. Como nem sempre as provisões que levavam eram suficientes para a incerta vida marítima – as tempestades, por exemplo, podiam tirar os navios da rota -, os piratas acabavam a pão e água (ou nem isso) até chegar a um porto seguro onde pudessem reabastecer os navios. Freqüentemente, a comida não só era pouca mas inadequada. A falta de vitamina C, por exemplo fazia o marinheiro morrer de escorbuto, doença que se caracteriza por provocar fortes hemorragias. Trechos de um depoimento deixado por um pirata anônimo, citado pelo historiador Edward Ritchie, da Universidade da Califórnia, dá uma idéia do que podia ser a vida de pirata:

“Muitas são as misérias que os marinheiros enfrentam quando adoecem, sendo poucos os meios de se reconfortarem, pois então não podem buscar a carne e a bebida que acham que lhes farão bem (…) E, quando o marinheiro morre, é ‘enterrado’ rapidamente, poupando aos amigos e conhecidos o trabalho de ir à igreja e mandar dobrar os sinos (…) Em lugar disso eles apenas o costuram num cobertor velho ou num pedaço de lona, amarram em seus pés duas ou três balas de canhão e o lançam ao mar”. Havia ainda problemas mais prosaicos. Por exemplo, o constante contato com a água salgada decompunha as roupas rapidamente e os piratas se viam obrigados a usar as sedas e brocados que haviam pilhado – e que não eram propriamente os trajes mais adequados para o clima e o serviço.”

Não espanta assim que, se a primeira ambição de um pirata fosse enriquecer, a segunda era voltar para casa o quanto antes. Em casa, alguns piratas bem-sucedidos, tinham prêmios adicionais à espera. Além de Sir Francis Drake, houve o caso do inglês Henry Morgan. No comando de uma frota que chegou a ter 36 navios, ele percorreu o mar das Antilhas durante dezessete anos. Mas em 1672 foi preso e reconduzido à Inglaterra. Ali, no entanto, foi feito cavaleiro e ainda por cima nomeado governador da Jamaica – com a incumbência de reprimir a atividade de seus ex-companheiros. Morgan morreu em 1688, aos 53 anos, em santa paz e cercado de todas as homenagens.

Foi por essa época, no final do século XVII, que as colônias inglesas, francesas e holandesas nas Antilhas começaram a atrair aventureiros de todo tipo. Como não tinham terras e a economia colonial girava em torno de plantações que utilizavam mão-de-obra escrava, esses forasteiros acabaram confinados a alguns povoados. Por força do isolamento, organizaram-se em confrarias para tentar a sorte no mar, dedicando-se também à pirataria. Como algumas dessas colônias eram pobres, seus governadores, sem meios de combater os piratas, não tinham outra saída senão aliar-se a eles. Por isso, alguns portos antilhanos, como Port Royal, Anguila e a ilha de Tortuga, transformaram-se em célebres esconderijos de piratas.

Tanto nos povoados que freqüentavam quanto nos seus navios, as regras eram informais. Num livro sobre pirataria, tema que fascinou o inglês Daniel Defoe (1660-1731), autor do clássico romance Robinson Crusoé, narra que, muitas vezes, os piratas elegiam democraticamente seus capitães. Eles também acabaram substituindo a tradicional bandeira vermelha sem emblema, a marca registrada dos navios corsários, pelo pano negro estampado com a caveira e os ossos cruzados. Os ladrões do mar, entretanto, já estavam com os dias contados.

No início do século XVIII, já estabelecida como a nação mais rica e poderosa do mundo, a Inglaterra dispensou definitivamente os serviços dos piratas – e declarou aberta a temporada de caça à pirataria. Assim o governo britânico cumpria com algum atraso o compromisso assinado em 1670, no Tratado de Madri. A primeira lei inglesa instituindo tribunais especiais para julgar os piratas capturados data de 1700. Foi graças a essa lei que o capitão William Kidd acabou executado e teve seu corpo exposto em Londres em 1701. Dezessete anos depois, chegou a vez de outro pirata famoso, Edward Teach, o Barba Negra, que assolava as colônias inglesas da costa sudeste da América do Norte. Ele costumava buscar refúgio em Charleston, na Carolina do Sul, mas os habitantes do lugar acabariam criando coragem e trataram de dar cabo de tão perniciosa figura. Assim, Barba Negra terminou seus dias linchado. Os corsários saíam da história para virar lenda.

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