Fábio Marton
Imagine uma tarde
qualquer em Paris, Londres ou Berlim antes da Primeira Guerra, em 1913. Cavalos
e carroças dividem a rua com bondes e poucos automóveis. Num café, homens leem
jornais e discutem as novidades: aviões e corridas de carros. Desde a queda de
Napoleão (quase 100 anos antes), a Europa inteira não se envolve numa guerra de
grandes proporções. A África e boa parte da Ásia estão sob domínio dos
europeus, e os colonizados são temas da arte moderna, para os quais crítica e
público torcem o nariz. Moças em espartilhos e mangas até o punho jogam
conversa fiada numa confeitaria, quem sabe sobre o voto feminino — que os
homens consideram fútil. A tecnologia dava saltos, mas ainda se vivia sob
valores da Era Vitoriana: o futuro seria a “marcha inexorável da civilização
ocidental sobre a barbárie”. Essa era de certezas ganhou o nome de Belle
Époque, a “bela época”.
Era um mundo no qual “todos sabiam o que glória e honra
queriam dizer”, escreveu o historiador Paul Fussel, autor de The
Great War and Modern Memory ("A Grande Guerra e a Memória Moderna", sem
tradução). Uma sociedade despreparada para a escala e os métodos inéditos de
matança, que incluíam metralhadoras, bombas dispensadas de aviões, torpedos de
submarinos e, mais que tudo, o tédio aterrador das trincheiras. Com o conflito,
seriam perdidas 17 milhões de vidas. “O grande edifício da civilização do
século 19 foi demolido nas chamas da grande guerra, quando seus pilares
desabaram”, afirmou o historiador Eric Hobsbawn. Para ele, a guerra marca o
início do “Curto Século 20”: um período de incerteza violenta, no qual nenhum
valor passaria sem ser contestado. Nas páginas a seguir, mostramos como vários
aspectos do mundo atual surgiram dessa destruição.
Refresque a memória:
A
Primeira Guerra (1914-1918) começa após o
assassinato do herdeiro ao trono da Áustria-Hungria. A morte desencadeou uma
série de declarações de guerra pautadas por uma política prévia de alianças
militares. No lado vencedor, as principais nações eram Reino Unido, Rússia e
França — e os EUA, que entraram no final da guerra. No lado derrotado, os
protagonistas eram Alemanha, Império Austro-Húngaro e Império Otomano.
UNIÃO
SOVIÉTICA > Como a Guerra ajudou a Revolução Comunista
Derrotas no conflito e falta de apoio popular para mais
batalhas contra a revolução foram decisivos
Além de
estratégias militares obsoletas — algo que tinha em comum com outros países —,
a Rússia padecia do fato de ser um país agrário numa guerra industrial. Seus
constantes fracassos no front levaram à imensa revolta que explodiu em
fevereiro de 1917. O exército recusou-se a suprimir as manifestações, e o czar
Nicolau II abdicou no mês seguinte. Vladmir Lênin, exilado na Suíça após
se envolver em uma revolta similar em 1905, voltou à Rússia em abril com um
objetivo. Marxista não ortodoxo, acreditava que era possível se fazer uma
revolução do proletariado num país onde os trabalhadores industriais eram
minoria. Outros comunistas, incluindo o próprio Marx, achavam que a revolução
só poderia acontecer num país capitalista avançado. Mas Lênin conseguiu: em
novembro, com o apoio dos Guardas Vermelhos, trabalhadores armados e militares
de baixa patente, ele derrubou o governo provisório criado com a queda do czar.
Nascia o primeiro estado marxista da história.
A
Grande Guerra foi essencial para o sucesso da experiência. Seriam cinco anos de
guerra civil até que a resistência fosse contida. Os países capitalistas até
tentaram intervir em favor dos russos anticomunistas, mandando mais de 100 mil
soldados — mas não havia apoio popular para outra guerra, e eles acabaram se
retirando. A União Soviética, assim, sobreviveria, espalhando o comunismo
e liderando um dos dois grandes blocos da divisão geopolítica do século 1920.
ESTADOS UNIDOS > O novo
centro do capitalismo
Grande vencedor, país passou de devedor a credor dos europeus
Grande vencedor, país passou de devedor a credor dos europeus
A entrada dos
EUA na Guerra foi tardia, mas com consequências imensas. Suas tropas só viram
ação em outubro de 1917 e passaram de 1 milhão de soldados apenas no ano
seguinte. No entanto, ao declarar guerra à Alemanha, em 6 de abril de 1917, o
país quebrava uma tradição de distanciamento em assuntos europeus que vinha
desde sua independência. Foi uma intervenção para, nas palavras do então
presidente Woodrow Wilson, “tornar o mundo seguro para a democracia”. Ainda
hoje, a política externa americana é, em boa parte, guiada por essas palavras.
Além disso, a guerra mudou o centro financeiro mundial.
Ao
final de 1917, os Estados Unidos haviam emprestado quase US$ 3 bilhões aos
governos francês e britânico para a guerra. Passaram de devedores dos europeus
a credores do resto do mundo."Como os vencedores europeus estavam
profundamente endividados com os EUA, a capital mundial das finanças mudou de
Londres para Wall Street", escreve a historiadora Sally Marks.
AERONAVES
> Surge o avião como conhecemos
Os bombardeiros deram início ao transporte aéreo
Os bombardeiros deram início ao transporte aéreo
Na prática,
quando a Grande Guerra começou, a indústria aeronáutica europeia tinha apenas 6
anos. O Flyer III, dos Irmãos Wright, foi apresentado em 1908 em Paris, e dele
nasceu a indústria. No início da guerra, os aviões eram usados apenas para
reconhecimento, decolavam desarmados. Os primeiros “bombardeios” consistiram em
pilotos carregando pequenas bombas no colo e as atirando com as mãos. Mas a
tecnologia avançou muito durante o conflito.
Todo
o tipo de configuração foi testado naqueles anos, num desfile de formas malucas
que lembra o desenho em que Dick Vigarista perseguia o pombo (inspirado na
guerra, aliás). Na tentativa e erro, a forma definitiva foi surgindo: motor na
frente e estabilizadores atrás, ao contrário das primeiras máquinas dos
Irmãos Wright ou de Santos Dumont. A velocidade máxima das aeronaves passou de
150 km/h a 230 km/h e, em 1918, bombardeiros carregavam mais de dez vezes o
peso de um avião de 1914.
Os grandes bombardeiros, alguns convertidos diretamente em
aviões civis, seriam a origem do transporte aéreo. Na década seguinte surgiram
os serviços de viagens, principalmente em hidroaviões, já que aeroportos eram
raros. Também graças à Guerra, os serviços tinham boa oferta de mão de obra: os
veteranos do conflito.
TANQUE
> Primo do trator
Como o veículo militar mudou o jeito de fazer guerra e de conduzir nossa agricultura
Como o veículo militar mudou o jeito de fazer guerra e de conduzir nossa agricultura
O nome
“tanque” vem de uma contingência da guerra. Era um jeito de despistar os
alemães sobre a real natureza do invento, tentando fazê-lo parecer inofensivo,
como um tanque de água. O nome real não pegou: o Comitê de Navios Terrestres
foi criado na Inglaterra em 1915, para solucionar o impasse das trincheiras.
Resumidamente, o emprego de metralhadoras tornava qualquer avanço de infantaria
uma manobra suicida (veja abaixo). Estreando em setembro de 1916, o tanque
britânico Mark I foi o primeiro da história. Passava por cima de arame farpado
e das trincheiras, indo direto às metralhadoras, que destruía com seus canhões.
Isso abria caminho para o avanço da infantaria. Os alemães mantiveram-se
céticos e só produziram 20 unidades de seu único modelo, o A7V. Em 1918,
pagaram com a derrota.
Uma
consequência inesperada do veículo foi incentivar a indústria de tratores. As
esteiras dos tanques foram copiadas de implementos agrícolas, mas esses só
passariam a ser produzidos em grande número a partir da década de 20, quando a
tecnologia, testada no combate, estava madura o suficiente. O trator foi um dos
principais instrumentos da chamada Revolução Verde, que aumentou a
produtividade e sextuplicou a produção de alimentos no século 20. Se você tem
arroz no prato a um preço acessível, de certa forma, deve isso às trincheiras.
Adeus, pombo correio
No início da guerra pilotos recorriam a sinais com as
asas ou as mãos, bilhetes jogados de aviões em latas ou sinalizadores (fogos de
artifício) para transmitir mensagens. O rádio começou a ser usado em 1914 pelos
britânicos, mas, como um aparelho completo não cabia no avião, era instalado
apenas o emissor e o piloto mandava coordenadas das posições inimigas, sem
receber retorno. Só em 1917 os americanos desenvolveram o rádio de avião, mas
poucos puderam ser instalados antes do final do conflito. Esse invento — e a
experiência em coordenar um grande número de voos — daria origem ao controle de
tráfego aéreo, já no início dos anos 1920.
SUBMARINO
> Viagem ao fundo do mar
Avanço militar é relacionado a plataformas de petróleo e sonar
Avanço militar é relacionado a plataformas de petróleo e sonar
O submarino dos aliados não passava de um veículo de
patrulha costeira. O dos alemães era chamado de “navio
submarino” (unterseeboot ou u-boat). Isso explica a diferença: apenas este
avançava em águas profundas. Os u-boats ficavam invisíveis, emergindo,
atacando, e submergindo para a fuga. Até a invenção das cargas de profundidade
(bombas antissubmarino), em 1916, os aliados não tinham defesa contra eles.
Foram mais de 5 mil navios afundados por torpedos durante a guerra — como os
alemães não podiam enfrentar a marinha britânica na superfície, tentaram
afundar qualquer navio (a maioria não-militar) que se aproximasse da
Grã-Bretanha.
Os
submarinos não são apenas um avanço militar. Seu desenvolvimento tornou
possível que submersíveis passassem a explorar o fundo do mar. As plataformas
de petróleo marítimas ou a exploração oceânica em águas profundas estão
relacionadas a esse avanço. Outra criação crucial para a oceanografia também
está relacionada aos submarinos: o sonar, a única forma de detectá-los, foi
criado pouco antes da guerra e usado já em 1914 para mapear o fundo do oceano.
O equilíbrio político durante a Guerra Fria também passou pela capacidade dos
veículos: os submarinos nucleares eram uma garantia que, mesmo que uma das
potências atacasse primeiro e destruísse todos os mísseis e aviões inimigos,
ainda assim sofreria a retaliação atômica.
PROPAGANDA
> A arte de demonizar
Têm início as campanhas para jogar a opinião pública contra inimigos do país
Têm início as campanhas para jogar a opinião pública contra inimigos do país
As potências
centrais iniciaram a guerra, mas não cumpriam bem o papel de vilãs. Na América
e Europa, havia muita simpatia por Alemanha e Áustria-Hungria. Embora fossem
autoritários, os países não eram ditaduras e gozavam de liberdade de imprensa e
grande prosperidade. A Alemanha foi o primeiro país a criar um sistema de seguridade
social. Eram lugares vibrantes, sede de progresso científico e cultural. Basta
lembrar que o cientista Albert Einstein era um filho do Império Alemão, e
Freud, o pai da psicanálise, era austríaco.
Por
isso foi necessário um grande esforço para reverter o respeito pelos germânicos
da opinião pública. A Primeira Guerra viu a primeira ação massiva de propaganda
governamental — no sentido estrito do termo, do governo tentando incutir ideias
na população. Buscando recrutar soldados ou conseguir bancar investimentos para
a guerra — os war bonds, títulos especiais que poderiam ser descontados anos
depois —, a propaganda de ingleses, americanos e franceses transformaram os
alemães em animais que pretendiam destruir a civilização. Os germânicos também
aderiram à propaganda, em menor grau, geralmente com um tom mais defensivo,
lembrando a hipocrisia da nação mais imperialista do mundo — o Reino Unido —
posar como defensora da liberdade. Reflexos disso apareceram em governos
totalitários ou democracias em guerra por todo o século 20 — como o notório
“Brasil: Ame-o ou deixe-o” da época da ditadura militar.
COSTUMES
> Depois do horror, a festa
Austeridade da Belle Époque e dos anos de guerra dá lugar a hedonismo e mina a repressão sexual
Austeridade da Belle Époque e dos anos de guerra dá lugar a hedonismo e mina a repressão sexual
Bombas não destruíram apenas edifícios vitorianos, mas também
o senso de decência da época. A geração dos sobreviventes e dos que eram muito
jovens para lutar aderiu ao hedonismo. À austera moralidade da Belle Époque,
seguiram-se os roaring twenties, os loucos anos 20, retratados em obras como O
Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald — ele mesmo, um veterano do confronto.
Embalados a álcool (consumido ilegalmente nos EUA), jazz e carros velozes, os
jovens passaram a experimentar a mais escandalosa invenção da época: o namoro.
Antes, fazia-se a “corte”, com o rapaz se apresentando e pedindo aceitação da
família da moça. A crise dos anos 1930 e a ascensão do fascismo puseram
fim à folia, mas a repressão sexual nunca voltaria a ser como antes, e cairia
de vez durante a década de 1960.
ARTE
> Modernismo vira mainstream
Horror da guerra ajuda a mudar a percepção sobre a arte
Horror da guerra ajuda a mudar a percepção sobre a arte
Quando Las Demoiselles d’Avignon foi exibida por Picasso
em 1916, mesmo os amigos do artista a consideravam uma vergonha. Ao ver a
exibição, um crítico parisiense comentou que “os cubistas não querem esperar
até o fim da guerra para continuar seu ataque ao bom senso”. Ele não era
exceção: o modernismo era visto como uma frivolidade de meia dúzia de malucos
antes da Primeira Guerra. A brutalidade do conflito fez com que a violência se
incorporasse à arte e tomasse o espaço antes dedicado a celebrar a beleza. Nos
anos 1920, artistas como Picasso deixaram de ser malditos para se tornarem
figuras centrais. “Para nossa preocupação com velocidade, novidade, fugacidade
e o mundo interior – com a vida vivida, como diz o jargão, ‘na via expressa’ –,
uma escala inteira de valores teve de ceder lugar e a Grande Guerra é o evento
mais significativo nesse desenvolvimento”, afirma o historiador canadense
Modris Eksteins em The Rites of Spring:
The Great War and The Birth of Modern Age (sem tradução).
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