sexta-feira, 28 de julho de 2017

[PGM] Qual é a importância da Primeira Guerra Mundial para os dias de hoje?

Fábio Marton


Imagine uma tarde qualquer em Paris, Londres ou Berlim antes da Primeira Guerra, em 1913. Cavalos e carroças dividem a rua com bondes e poucos automóveis. Num café, homens leem jornais e discutem as novidades: aviões e corridas de carros. Desde a queda de Napoleão (quase 100 anos antes), a Europa inteira não se envolve numa guerra de grandes proporções. A África e boa parte da Ásia estão sob domínio dos europeus, e os colonizados são temas da arte moderna, para os quais crítica e público torcem o nariz. Moças em espartilhos e mangas até o punho jogam conversa fiada numa confeitaria, quem sabe sobre o voto feminino — que os homens consideram fútil. A tecnologia dava saltos, mas ainda se vivia sob valores da Era Vitoriana: o futuro seria a “marcha inexorável da civilização ocidental sobre a barbárie”. Essa era de certezas ganhou o nome de Belle Époque, a “bela época”.

Era um mundo no qual “todos sabiam o que glória e honra queriam dizer”, escreveu o historiador Paul Fussel, autor de The Great War and Modern Memory ("A Grande Guerra e a Memória Moderna", sem tradução). Uma sociedade despreparada para a escala e os métodos inéditos de matança, que incluíam metralhadoras, bombas dispensadas de aviões, torpedos de submarinos e, mais que tudo, o tédio aterrador das trincheiras. Com o conflito, seriam perdidas 17 milhões de vidas. “O grande edifício da civilização do século 19 foi demolido nas chamas da grande guerra, quando seus pilares desabaram”, afirmou o historiador Eric Hobsbawn. Para ele, a guerra marca o início do “Curto Século 20”: um período de incerteza violenta, no qual nenhum valor passaria sem ser contestado. Nas páginas a seguir, mostramos como vários aspectos do mundo atual surgiram dessa destruição.

Refresque a memória:

A Primeira Guerra (1914-1918) começa após o assassinato do herdeiro ao trono da Áustria-Hungria. A morte desencadeou uma série de declarações de guerra pautadas por uma política prévia de alianças militares. No lado vencedor, as principais nações eram Reino Unido, Rússia e França — e os EUA, que  entraram no final da guerra. No lado derrotado, os protagonistas eram Alemanha, Império Austro-Húngaro e Império Otomano.


UNIÃO SOVIÉTICA > Como a Guerra ajudou a Revolução Comunista
Derrotas no conflito e falta de apoio popular para mais batalhas contra a revolução foram decisivos

Além de estratégias militares obsoletas — algo que tinha em comum com outros países —, a Rússia padecia do fato de ser um país agrário numa guerra industrial. Seus constantes fracassos no front levaram à imensa revolta que explodiu em fevereiro de 1917. O exército recusou-se a suprimir as manifestações, e o czar Nicolau II abdicou no mês seguinte.  Vladmir Lênin, exilado na Suíça após se envolver em uma revolta similar em 1905, voltou à Rússia em abril com um objetivo. Marxista não ortodoxo, acreditava que era possível se fazer uma revolução do proletariado num país onde os trabalhadores industriais eram minoria. Outros comunistas, incluindo o próprio Marx, achavam que a revolução só poderia acontecer num país capitalista avançado. Mas Lênin conseguiu: em novembro, com o apoio dos Guardas Vermelhos, trabalhadores armados e militares de baixa patente, ele derrubou o governo provisório criado com a queda do czar. Nascia o primeiro estado marxista da história.

A Grande Guerra foi essencial para o sucesso da experiência. Seriam cinco anos de guerra civil até que a resistência fosse contida. Os países capitalistas até tentaram intervir em favor dos russos anticomunistas, mandando mais de 100 mil soldados — mas não havia apoio popular para outra guerra, e eles acabaram se retirando. A União Soviética, assim, sobreviveria, espalhando o comunismo  e liderando um dos dois grandes blocos da divisão geopolítica do século 1920.

ESTADOS UNIDOS > O novo centro do capitalismo
Grande vencedor, país passou de devedor a credor dos europeus


A entrada dos EUA na Guerra foi tardia, mas com consequências imensas. Suas tropas só viram ação em outubro de 1917 e passaram de 1 milhão de soldados apenas no ano seguinte. No entanto, ao declarar guerra à Alemanha, em 6 de abril de 1917, o país quebrava uma tradição de distanciamento em assuntos europeus que vinha desde sua independência. Foi uma intervenção para, nas palavras do então presidente Woodrow Wilson, “tornar o mundo seguro para a democracia”. Ainda hoje, a política externa americana é, em boa parte, guiada por essas palavras. Além disso, a guerra mudou o centro financeiro mundial.

Ao final de 1917, os Estados Unidos haviam emprestado quase US$ 3 bilhões aos governos francês e britânico para a guerra. Passaram de devedores dos europeus a credores do resto do mundo."Como os vencedores europeus estavam profundamente endividados com os EUA, a capital mundial das finanças mudou de Londres para Wall Street", escreve a historiadora Sally Marks.

AERONAVES > Surge o avião como conhecemos
Os bombardeiros deram início ao transporte aéreo


Na prática, quando a Grande Guerra começou, a indústria aeronáutica europeia tinha apenas 6 anos. O Flyer III, dos Irmãos Wright, foi apresentado em 1908 em Paris, e dele nasceu a indústria. No início da guerra, os aviões eram usados apenas para reconhecimento, decolavam desarmados. Os primeiros “bombardeios” consistiram em pilotos carregando pequenas bombas no colo e as atirando com as mãos. Mas a tecnologia avançou muito durante o conflito.

Todo o tipo de configuração foi testado naqueles anos, num desfile de formas malucas que lembra o desenho em que Dick Vigarista perseguia o pombo (inspirado na guerra, aliás). Na tentativa e erro, a forma definitiva foi surgindo: motor na frente e estabilizadores atrás, ao contrário das  primeiras máquinas dos Irmãos Wright ou de Santos Dumont. A velocidade máxima das aeronaves passou de 150 km/h a 230 km/h e, em 1918, bombardeiros carregavam mais de dez vezes o peso de um avião de 1914.

Os grandes bombardeiros, alguns convertidos diretamente em aviões civis, seriam a origem do transporte aéreo. Na década seguinte surgiram os serviços de viagens, principalmente em hidroaviões, já que aeroportos eram raros. Também graças à Guerra, os serviços tinham boa oferta de mão de obra: os veteranos do conflito.

TANQUE > Primo do trator
Como o veículo militar mudou o jeito de fazer guerra e de conduzir  nossa agricultura



O nome “tanque” vem de uma contingência da guerra. Era um jeito de despistar os alemães sobre a real natureza do invento, tentando fazê-lo parecer inofensivo, como um tanque de água. O nome real não pegou: o Comitê de Navios Terrestres foi criado na Inglaterra em 1915, para solucionar o impasse das trincheiras. Resumidamente, o emprego de metralhadoras tornava qualquer avanço de infantaria uma manobra suicida (veja abaixo). Estreando em setembro de 1916, o tanque britânico Mark I foi o primeiro da história. Passava por cima de arame farpado e das trincheiras, indo direto às metralhadoras, que destruía com seus canhões. Isso abria caminho para o avanço da infantaria. Os alemães mantiveram-se céticos e só produziram 20 unidades de seu único modelo, o A7V. Em 1918, pagaram com a derrota.
Uma consequência inesperada do veículo foi incentivar a indústria de tratores. As esteiras dos tanques foram copiadas de implementos agrícolas, mas esses só passariam a ser produzidos em grande número a partir da década de 20, quando a tecnologia, testada no combate, estava madura o suficiente. O trator foi um dos principais instrumentos da chamada Revolução Verde, que aumentou a produtividade e sextuplicou a produção de alimentos no século 20. Se você tem arroz no prato a um preço acessível, de certa forma, deve isso às trincheiras.

Adeus, pombo correio

No início da guerra pilotos recorriam a sinais com as asas ou as mãos, bilhetes jogados de aviões em latas ou sinalizadores (fogos de artifício) para transmitir mensagens. O rádio começou a ser usado em 1914 pelos britânicos, mas, como um aparelho completo não cabia no avião, era instalado apenas o emissor e o piloto mandava coordenadas das posições inimigas, sem receber retorno. Só em 1917 os americanos desenvolveram o rádio de avião, mas poucos puderam ser instalados antes do final do conflito. Esse invento — e a experiência em coordenar um grande número de voos — daria origem ao controle de tráfego aéreo, já no início dos anos 1920.

SUBMARINO > Viagem ao fundo do mar
Avanço militar é relacionado a plataformas de petróleo e sonar


O submarino dos aliados não passava de um veículo de patrulha costeira. O dos alemães era chamado de “navio submarino” (unterseeboot ou u-boat). Isso explica a diferença: apenas este avançava em águas profundas. Os u-boats ficavam invisíveis, emergindo, atacando, e submergindo para a fuga. Até a invenção das cargas de profundidade (bombas antissubmarino), em 1916, os aliados não tinham defesa contra eles. Foram mais de 5 mil navios afundados por torpedos durante a guerra — como os alemães não podiam enfrentar a marinha britânica na superfície, tentaram afundar qualquer navio (a maioria não-militar) que se aproximasse da Grã-Bretanha.

Os submarinos não são apenas um avanço militar. Seu desenvolvimento tornou possível que submersíveis passassem a explorar o fundo do mar. As plataformas de petróleo marítimas ou a exploração oceânica em águas profundas estão relacionadas a esse avanço. Outra criação crucial para a oceanografia também está relacionada aos submarinos: o sonar, a única forma de detectá-los, foi criado pouco antes da guerra e usado já em 1914 para mapear o fundo do oceano. O equilíbrio político durante a Guerra Fria também passou pela capacidade dos veículos: os submarinos nucleares eram uma garantia que, mesmo que uma das potências atacasse primeiro e destruísse todos os mísseis e aviões inimigos, ainda assim sofreria a retaliação atômica.

PROPAGANDA > A arte de demonizar
Têm início as campanhas para jogar a opinião pública contra inimigos do país


As potências centrais iniciaram a guerra, mas não cumpriam bem o papel de vilãs. Na América e Europa, havia muita simpatia por Alemanha e Áustria-Hungria. Embora fossem autoritários, os países não eram ditaduras e gozavam de liberdade de imprensa e grande prosperidade. A Alemanha foi o primeiro país a criar um sistema de seguridade social. Eram lugares vibrantes, sede de progresso científico e cultural. Basta lembrar que o cientista Albert Einstein era um filho do Império Alemão, e Freud, o pai da psicanálise, era austríaco.

Por isso foi necessário um grande esforço para reverter o respeito pelos germânicos da opinião pública. A Primeira Guerra viu a primeira ação massiva de propaganda governamental — no sentido estrito do termo, do governo tentando incutir ideias na população. Buscando recrutar soldados ou conseguir bancar investimentos para a guerra — os war bonds, títulos especiais que poderiam ser descontados anos depois —, a propaganda de ingleses, americanos e franceses transformaram os alemães em animais que pretendiam destruir a civilização. Os germânicos também aderiram à propaganda, em menor grau, geralmente com um tom mais defensivo, lembrando a hipocrisia da nação mais imperialista do mundo — o Reino Unido — posar como defensora da liberdade. Reflexos disso apareceram em governos totalitários ou democracias em guerra por todo o século 20 — como o notório “Brasil: Ame-o ou deixe-o” da época da ditadura militar.

COSTUMES > Depois do horror, a festa
Austeridade da Belle Époque e dos anos de guerra dá lugar a hedonismo e mina a repressão sexual

Bombas não destruíram apenas edifícios vitorianos, mas também o senso de decência da época. A geração dos sobreviventes e dos que eram muito jovens para lutar aderiu ao hedonismo. À austera moralidade da Belle Époque, seguiram-se os roaring twenties, os loucos anos 20, retratados em obras como O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald — ele mesmo, um veterano do confronto. Embalados a álcool (consumido ilegalmente nos EUA), jazz e carros velozes, os jovens passaram a experimentar a mais escandalosa invenção da época: o namoro. Antes, fazia-se a “corte”, com o rapaz se apresentando e pedindo aceitação da família da moça.  A crise dos anos 1930 e a ascensão do fascismo puseram fim à folia, mas a repressão sexual nunca voltaria a ser como antes, e cairia de vez durante a década de 1960.

ARTE > Modernismo vira mainstream
Horror da guerra ajuda a mudar a percepção sobre a arte

Quando Las Demoiselles d’Avignon foi exibida por Picasso em 1916, mesmo os amigos do artista a consideravam uma vergonha. Ao ver a exibição, um crítico parisiense comentou que “os cubistas não querem esperar até o fim da guerra para continuar seu ataque ao bom senso”. Ele não era exceção: o modernismo era visto como uma frivolidade de meia dúzia de malucos antes da Primeira Guerra. A brutalidade do conflito fez com que a violência se incorporasse à arte e tomasse o espaço antes dedicado a celebrar a beleza. Nos anos 1920, artistas como Picasso deixaram de ser malditos para se tornarem figuras centrais. “Para nossa preocupação com velocidade, novidade, fugacidade e o mundo interior – com a vida vivida, como diz o jargão, ‘na via expressa’ –, uma escala inteira de valores teve de ceder lugar e a Grande Guerra é o evento mais significativo nesse desenvolvimento”, afirma o historiador canadense Modris Eksteins em The Rites of Spring: The Great War and The Birth of Modern Age (sem tradução).


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http://epaubel.blogspot.com.br/2014/04/pgm-cientista-politico-afirma-que.html

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