Cristiano Dias
O Sol nem havia se levantado e o calor já anunciava
outro dia quente. O verão na Andaluzia sempre foi seco e interminável. De seu
acampamento, às margens do rio Guadalete, Tariq Ibn Ziyad, um oficial muçulmano
a serviço do governador de Tânger, viu surgir no horizonte uma multidão de
soldados. Cerca de 40 mil homens do exército cristão visigodo comandado por
Rodrigo, duque da Bética e homem-chave do maior reino germânico do Ocidente, se
aproximavam. Era 19 de julho de 711 e seus milhares de soldados em breve
travariam uma batalha que mudaria para sempre a história da península Ibérica.
A visão de Tariq mostrava-se aterradora. Os
visigodos pareciam monstros. Enfiados em gigantescas armaduras e enfileirados
disciplinadamente ao longo das colinas, somavam mais de dois cavaleiros para
cada guerreiro árabe, que não empunhava nada além da espada e de sua fé no
Corão. A seu favor, tinha uma tropa descansada, que entraria em combate contra
um inimigo que marchara por dois meses para a batalha. Tariq sabia disso e não
permitiu que os cristãos descansassem. Ainda pela manhã, deu a ordem de ataque.
O que se viu a seguir foi uma lenta carnificina. Em menos de uma semana, os
árabes, mais leves e ágeis, passaram pelo fio da espada a nata do exército
visigodo. Ao fim de cada dia, havia tantos corpos pelo campo de batalha que
ficava impossível identificar os mortos. O banho de sangue foi interrompido
quando as tropas cristãs perceberam que seu líder desaparecera, provavelmente
entre os milhares de cadáveres. Sem Rodrigo, a Batalha de Guadalete terminou
com suas tropas fugindo apavoradas.
Antes do término do ano, os árabes conquistariam
Córdoba e a capital, Toledo, sem encontrar maiores resistências. Em 712, caiu
Sevilha. No ano seguinte, foi a vez de Huelva, Faro, Beja e Mérida. Em 714,
Burgos, Leão, Viseu, Évora, Santarém, Coimbra e Lisboa. Em 716, Braga, Porto e
toda a Catalunha estavam sob o domínio de Alá. Em pouco tempo, os muçulmanos
varreram a península Ibérica. Cada vez mais confinados ao norte, os cristãos
tentavam sobreviver à onda de ataques. Do outro lado, animados pela facilidade
das vitórias, os mouros passaram a lutar além dos Pirineus, em território
francês. Finalmente, em 732, foram vencidos em Poitiers pelo franco Carlos
Martel. Mas, se a derrota impediu o avanço do islã ao norte da Europa, não
significou o fim de sua influência no sul. Até 737 os árabes tomariam Arles,
Avignon, Lyon e o vale do Ródano e ficariam na península e parte da Europa por
um longo período.
Herdeiros de Maomé
Maomé morreu em 632, depois de unificar os povos da
península Arábica. Como foi possível transformar um pais de nômades na maior
potência do planeta em pouco mais de 100 anos? Os historiadores concordam que o
fator principal para a expansão fulminante foi a decadência dos grandes impérios
– bizantino, persa e romano –, já pulverizados em vários reinos germânicos. “Em
todos esses lugares, a peste e a fome dizimavam populações inteiras, que
recebiam os árabes como salvadores da pátria”, diz Albert Hourani, autor de Uma História dos Povos Árabes.
“Quando chegaram à Espanha, os árabes encontraram o
reino visigodo no caos. Entre 707 e 709, houve uma seca sem precedentes, que
arrasou as colheitas e espalhou a fome. Além disso, a enorme colônia judaica
estava sendo perseguida. Assim, camponeses e judeus receberam os mouros de
braços abertos”, afirma o historiador espanhol José Manuel González Vesga,
autor de Breve Historia de España (sem
tradução).
Depois de serem recebidos como libertadores, era
hora de botar ordem na casa, o que demorou outro meio século. De 711 a 756, o
poder árabe na península Ibérica foi exercido por dezenas de emires, a maioria
escolhida pelos árabes instalados na península. Na prática, isso significava
que o poder central, por mais poderoso que fosse, perdia a força com a longa
distância.
A falta de unidade racial e religiosa dentro das
fronteiras do califado foi a maior responsável por sua ruína. Judeus, cristãos,
eslavos, ninguém se adaptou à tradicional organização familiar muçulmana,
especialmente à poligamia e ao direito de herança. Além disso, rivalidades
internas desataram uma guerra civil dentro da Andaluzia árabe que fragmentou o
califado em dezenas de pequenos reinos, conhecidos como taifas.
Não foi à toa que, a partir de 1031, com o
desmembramento do califado, os cristãos começaram a ganhar terreno na península
Ibérica. Com exceção de Barcelona, retomada em 801, e Porto e Braga, em 868,
todas as outras grandes vitórias cristãs ocorreram após a queda do califa de
Córdoba. Como Coimbra, recuperada em 1064. Madrid, em 1083. Toledo, em 1085.
Zaragoza, em 1118. Sevilha, em 1248.
Granada, Última fronteira
Apesar das vitórias, os cristãos demoraram mais 200
anos para terminar o serviço. Só conseguiram depois de resolver as divergências
internas. Em 1469, Fernando de Aragão se casou com Isabel de Castela, e a coroa
espanhola foi unificada. A situação dos árabes estava insustentável. Eles se
confinava na cidade de Granada. Era pouco provável que conseguissem suportar a
pressão de uma Espanha unida.
Depois de uma longa trégua, a guerra recomeçou em
1482, com as tropas de Fernando conquistando pequenas localidades próximas à
última capital árabe da península. Em 1490, o rei armou seu acampamento nos
arredores de Granada. Em seguida, ordenou a de-vastação de vários campos cultivados
perto de suas muralhas e esperou o inverno chegar. Fernando sabia que seria
muito arriscado lançar um ataque contra as 1.030 torres que protegiam Granada.
Daí veio a ideia de cortar os suprimentos e fazer com que a fome se incumbisse
de derrotar o inimigo.
Percebendo que os espanhóis não atacariam, Abu
Boabdil Abdullah, rei dos mouros, ordenou uma série de ataques provocativos
para fustigar uma reação dos soldados de Fernando. Mandou que fossem
arremessadas lanças no acampamento espanhol com insultos amarrados na ponta.
Como nada dava certo, orientou seus homens a desafiar individualmente os
cavaleiros de Fernando para duelos. Durante algum tempo, os espanhóis perderam
boa parte dos homens nesses combates, até que Fernando proibiu sua tropa de
aceitá-los.
Em julho de 1491, um acidente quase matou a família
real espanhola. A noite, a rainha Isabel deixou que um lampião caísse e
queimasse sua tenda. O vento espalhou o fogo e logo o acampamento inteiro
estava em chamas. Os árabes tentaram se aproveitar do caos nas linhas inimigas,
atacando com a infantaria. O resultado foi desastroso para o rei mouro,
Boabdil. Com boa parte de seu exército fora de combate e apenas 300 cavalos
vivos – dos 7 mil iniciais –, ele viu Fernando avançar em direção à muralha.
Os espanhóis cortaram toda a comunicação da cidade
e impediam a chegada de reforços. Sem comida, não existia outra saída senão a
rendição. Em 25 de novembro, assinaram-se os termos. Os mouros teriam direito a
manter sua fé e quem quisesse ganharia uma passagem de volta para a África. Em
troca, a cidade deveria ser entregue. Em 2 de janeiro de 1492, Fernando e
Isabel marcharam triunfantes pelas ruas do último bastião árabe na
Espanha.
O homem que reconquistou Portugal
Dom Afonso Henriques nasceu em 1109, em terras já chamadas de
Condado Portucalense, nome dado à
cidade de Portucale (hoje Porto). Depois de ser fustigada pelos árabes, a
região passou a ser disputada por outros reinos cristãos mais importantes, como
Leão, Galícia e Castela. O pontapé inicial para a autonomia do condado
aconteceu no momento em que o infante completou 14 anos. Foi quando Afonso
Henrique começou a atazanar a vida de seus vassalos espanhóis. Ao assumir o
controle do condado, ele se recusou a prestar vassalagem aos reis vizinhos. Com
suas tropas, lutou contra todos eles e ainda teve tempo para guerrear contra os
árabes. Em 1139, saiu vitorioso na Batalha de Ouriques, derrotando cinco reis
mouros de uma só vez – o que rendeu à bandeira de Portugal o desenho de cinco
escudos em forma de cruz. Com o vento soprando a favor, no ano seguinte
resolveu se proclamar rei de Portugal, deixando de usar o tratamento de
infante. Depois de conquistar Leiria, Santarém, Lisboa e quase todo o Alentejo,
em 1179 foi reconhecido pelo papa Alexandre III como rei de Portugal e vassalo
apenas da Santa Igreja.
El Cid, cavaleiro lendário
Rodrigo
Días nasceu no vilarejo de Vivar, nos arredores de Burgos, em 1043. Desde cedo,
frequentou a corte do rei Sancho II de Castela, onde carregava o estandarte
real. Logo ganhou fama em duelos, o que lhe valeu o apelido de Campeador. Os
inimigos mouros o chamavam de sidi (“senhor”), e foi como El Cid que o primeiro
herói espanhol entrou para os livros de história. A boa vida de Cid na corte
castelhana acabou com a morte do rei e amigo Sancho. Seu sucessor, Afonso VII,
não ia com a cara do Campeador e decidiu desterrá-lo. El Cid perambulou então
por vários reinos oferecendo seus serviços. Lutou ao lado de árabes e cristãos,
multiplicando sua fama a cada vitória. Um dia, cansado de lutar para os outros,
formou uma pequena tropa e conquistou Valencia, que governou em nome dos reis
castelhanos. Lá, venceu os árabes seguidas vezes em combates, mantendo a cidade
sob a bandeira cristã até a sua morte, em 1099. Sua história inspirou o mais
antigo épico espanhol, o Poema de Mío Cid, escrito no século 12. De autoria
desconhecida, o texto foi responsável por disseminar a lenda de El Cid por toda
a Espanha como um cavaleiro obstinado e invencível.
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