domingo, 1 de julho de 2012

Clausewitz e a Arte da Guerra

Carl von Clausewitz (1780 - 1831) entrou para a vida militar aos doze anos, tendo servido em um dos regimentos prussianos tão bem descritos por John Keegan em seu livro Uma História da Guerra. Ainda jovem, acompanhou os exércitos prussianos em sua invasão à França, quando teve o primeiro contato com o fervor em combate dos revolucionários. Aos 21 anos, entrou para a Kriegsakademie, a escola militar de Berlim, onde estudou Kant e foi pupilo do general Scharnhorst, futuro chefe de estado-maior do exército da Prússia.

Durante a desastrosa campanha que levou à derrota dupla de Jena-Auerstedt, Clausewitz foi feito prisioneiro dos franceses. Libertado, tomou parte na reconstrução da Prússia após a Guerra da Quarta Coalizão, mas quando Napoleão declarou guerra à Rússia - forçando uma Prússia submissa a fazer o mesmo -, Carl von Clausewitz se juntou à Legião Russo-Germânica, testemunhando a primeira grande derrota dos exércitos napoleônicos. Enquanto esteve sob o serviço do Czar, ajudou a negociar a formação de uma aliança entre Prússia, Reino Unido e Rússia; tal coalizão levou à derrota de Bonaparte e posterior exílio.

Depois das Guerras Napoleônicas, Clausewitz foi promovido a Major-General e nomeado diretor da Kriegsakademie, que chefiou até 1830; um de seus alunos nesse período foi Helmut von Moltke, lendário comandante responsável pela vitória na Guerra Franco-Prussiana. No período entre 1818 e 1830, começou suas reflexões sobre a guerra, interrompidas em 1831 por sua morte em meio a uma epidemia de cólera. Seu livro, Vom Kriege, foi publicado postumamente por sua esposa.


Carl von Clausewitz

Tal lançamento sem uma revisão final por parte do autor fez com que surgissem muitas interpretações diferentes do autor. Ao mesmo tempo, Jomini e seus muitos discípulos tentaram conciliar as teses de Clausewitz com seus próprios princípios e máximas, o que levou a uma interpretação superficial. Ao rotularem a obra de Clausewitz como uma “filosofia da guerra” enquanto os derivados jominianos seriam “teóricos”, garantiu-se que a obra do general prussiano só teria suas conseqüências plenamente apreciadas no meio do século XX, com o surgimento do conceito da MAD (Destruição Mútua Assegurada).

A diferença de termos, apesar de oriunda de uma tentativa de negar o valor prático da teoria clausewitziana, expressa o quão distantes são as abordagens. Jomini tentou, através de uma análise histórica, resumir os princípios militares então vigentes em uma série de máximas suficientemente vagas para não serem desmentidas por qualquer mudança mas ainda assim úteis. Clausewitz, um homem do Iluminismo inspirado por filósofos como Kant, adotou uma abordagem dialética para explicar o que é a guerra.

De um lado, ele define a guerra como uma ferramenta política, gerando a célebre frase “A guerra é uma continuação da política por outros meios” (que, no original, dizia “com a entremistura de outros meios”). A antítese dessa idéia é a visão de que a guerra é puramente um duelo entre duas vontades - uma “luta-livre”, para uma analogia mais apropriada. Ao analisar ambas as idéias, chega-se a síntese que constitui um dos principais pontos da abordagem de Clausewitz: a guerra nunca é ilimitada, sendo sempre restrita por objetivos políticos e outros; no entanto, o nível de comprometimento é fator que influencia na vitória ou derrota do conflito.

O objetivo em uma guerra seria desarmar o oponente, ou seja, destruir efetivamente a capacidade do oponente de guerrear. Aí é que entra o comprometimento em uma guerra. Quanto mais determinado o inimigo, mais difícil é de removê-lo do conflito. Isso fica visível na análise que Domício Proença Júnior et al. fizeram em seu Guia de Estudos Estratégicos sobre a guerrilha. Tomemos o exemplo da Guerra do Vietnã. É inegável que os Estados Unidos dispunham de maior capacidade militar que o NVA e o Vietcong, mesmo que tomemos apenas a fração dos recursos militares estadunidenses efetivamente comprometidos com a proxy war. No entanto, por estarem lutando apenas por razões políticas e influenciados pelas informações e listas de mortos transmitidas pela mídia, estavam dispostos a arriscar bem menos em um conflito do que seus inimigos, que, além de lutarem em seu próprio território, combatiam por um ideal.

Um dos principais pontos alegados sobre a suposta incompletude da obra de Clausewitz estaria no fato de que ela é permeada demais pelo modo ocidental de guerrear. Realmente, na cultura ocidental, a guerra subordina-se aos interesses políticos, assim como a religião também se curva perante estes. Mas isso não é sempre válido. Tomemos o exemplo do Japão, em que as formas culturais, muito mais do que as necessidades políticas, modelaram a forma de guerrear. O xogunato Tokugawa, logo após vencer as terríveis guerras civis no século XVI, conseguiu fazer com que o uso de armas de fogo no Japão fosse efetivamente eliminado até a chegada do Comodoro Perry, já na década de 1850. Ao fazê-lo, Tokugawa Ieyasu deu uma sobrevida de três séculos aos samurais e ao modo de vida já institucionalizado, coisa que não aconteceu na Europa.

Para outros, a teoria de Clausewitz se tornou ultrapassada com o início da Guerra Fria. As superpotências da segunda metade do século XX atingiram aquilo que é o objetivo supremo de um Estado clausewitziano: destruir uma imagem especular de si mesmo. Com o advento das armas nucleares, elevava-se o preço de uma guerra de tal modo que apenas formas limitadas de combate seriam possíveis sem a destruição do mundo. Isso não torna a teoria de todo descartável, uma vez que, como visto, ela ainda consegue explicar fenômenos como o terrorismo, mas mostra que Clausewitz não mais é suficiente para explicar a atual forma da guerra.

Eis alguns excertos Da Guerra:

"Os princípios da arte da guerra são extremamente simples em si e estão ao alcance do comum dos mortais. Embora exijam um conhecimento mais especializado na táctica do que na estratégia, a sua variedade e complexidade de forma alguma se comparam às de qualquer outra ciência. Não são necessários conhecimento e estudo aprofundados, nem tão pouco qualidades intelectuais excepcionais. Se quiséssemos salientar uma característica mental especial, para além da capacidade de julgar fundada na experiência, teríamos então de falar na astúcia e na perspicácia. Tem sido sustentado o contrário, quer por causa de uma falsa veneração por este assunto quer por causa da vaidade dos autores que têm escrito sobre ele. Uma reflexão sem preconceitos devia convencer-nos disto, e a experiência apenas cimenta esta nossa convicção. Ainda recentemente, na guerra revolucionária, alguns indivíduos que nunca tiveram acesso a qualquer educação militar específica provaram ser grandes líderes militares, muitas vezes de primeira grandeza. É duvidoso que Condé, Wallenstein, Suworow e muitos outros possuíssem tal formação militar.”

“A condução da guerra é, sem dúvida, muito difícil. Mas a dificuldade não reside na necessidade de se possuir erudição especial ou grande gênio para perceber os princípios básicos da sua condução. Estes princípios estão ao alcance de qualquer pessoa capaz de pensar, desprovida de preconceitos e não totalmente leiga na matéria. A própria aplicação destes princípios básicos nos mapas ou no papel não oferece nenhuma dificuldade e conceber um bom plano de operações não é nenhum bicho-de-sete-cabeças.”

“O livre arbítrio e a alma do chefe militar são então constantemente tolhidos e é necessária uma grande força moral e mental para vencer esta resistência. Muitas idéias válidas morrem à nascença por causa desta fricção. Muitas vezes vemo-nos na contingência de ter de executar, da forma mais simples e despretensiosa, aquilo que, combinado de maneira mais complexa, produziria melhores resultados. Pode ser impossível enumerar exaustivamente as causas desta fricção. De qualquer modo, aqui ficam as principais:

1. No momento em que elaboramos o plano de operações sabemos muito pouco sobre as medidas tomadas pelo inimigo e sobre a sua posição. No momento de executarmos uma decisão somos assaltados freqüentemente por milhares de dúvidas sobre os perigos inerentes a podermos ter cometido um erro quanto aos pressupostos do plano de operações. Apoderar-se-á de nós um sentimento de nervosismo, semelhante ao que invade aqueles que estão prestes a realizar algo de grandioso. Deste nervosismo facilmente podemos passar à indecisão e desta às medidas titubeantes vai um pequeno passo.

2. Não só nos debatemos com a incerteza sobre a força real do inimigo, como todos os rumores (ou seja, todas as notícias que nos chegam através dos postos avançados, de espiões ou casualmente) lhe aumentam a amplitude. A maior parte das pessoas é hesitante por natureza, e assim se explica por que razão elas constantemente exageram o perigo. Todas as influências se combinam então para dar ao chefe militar uma idéia errada da força do inimigo que tem pela frente e aqui reside uma nova fonte de indecisão.

Não devemos dar muita importância a esta indecisão e é preciso prepararmo-nos para ela desde o início.

Depois de termos pensado em tudo antecipadamente e esquematizado sem preconceitos o plano mais plausível, não devemos abandonar de imediato as idéias iniciais. Muito pelo contrário, devemos submeter as informações que nos chegam ao escrutínio da critica avisada, compará-las umas com as outras e tentar obter outras. Deste modo, as informações falsas são muitas vezes desmentidas imediatamente e os primeiros relatórios confirmados. Em ambos os casos, obtemos certezas e, na posse delas, poderemos tomar decisões. Se nos faltarem certezas poderemos dizer para nós próprios que na guerra nada se consegue sem ousadia; que a natureza da guerra não nos permite sempre ver para onde vamos; que o que é provável, será sempre provável, muito embora de momento não o pareça; e que, se tomamos as precauções devidas, não deitaremos tudo a perder por causa de um único erro.

3. A incerteza sobre o estado das coisas num determinado momento não se limita apenas ao conhecimento do inimigo, mas estende-se também ao nosso próprio exército. Só muito raramente é que este pode ser mantido unido, de maneira a que possamos ter uma visão conjunta de todas as suas partes. Se tivermos tendência para nos sentirmos receosos e para hesitar, seremos assaltados por novas dúvidas. Vamos querer esperar e o resultado será o atraso na execução de todo o plano.

Temos, pois, que acreditar que as medidas gerais tomadas produzirão os resultados esperados. O mais importante, neste particular, é a confiança nos subordinados diretos. Conseqüentemente, devemos escolher pessoas em quem possamos confiar e pôr de parte todas as outras considerações. Se tomamos medidas preparatórias adequadas, ter-nos-emos precavido para quaisquer ocorrências desfavoráveis. Se elas acontecerem durante a execução do plano de operações não estaremos desde logo derrotados, tendo apenas que continuar a avançar corajosamente através daquilo que sabemos ser um mar de incertezas.

4. Se quisermos conduzir a guerra com o máximo potencial das nossas forças, os comandantes e mesmo as tropas (especialmente se não estão familiarizadas com a guerra) deparar-se-ão com dificuldades que descreverão como inultrapassáveis. Acharão a marcha demasiado longa, o esforço demasiado grande e o aprovisionamento impossível. Se dermos ouvidos a estas "dificuldades", como Frederico II as designava, em breve sucumbiremos e, em vez de agirmos com determinação e energia, ficaremos reduzidos à fraqueza e à inatividade.

Para combater tudo isto é imperioso termos confiança na nossa inteligência e nas nossas convicções. Na altura poderá parecer teimosia mas, na realidade, trata-se daquela força da mente e do caráter a que devemos dar o nome de firmeza.

(…)

Estas dificuldades na execução das operações requerem auto-confiança e firmeza de convicções. (…) Um sentimento poderoso deve fortalecer o ânimo do líder militar. Seja a ambição de César, o ódio ao inimigo de Aníbal, ou o orgulho numa derrota gloriosa, como com Frederico o Grande."

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