Ian Cobain*
Torturado
por soldados britânicos? Em cativeiro? Em Londres? A idéia parece incrível.
A Grã-Bretanha tem uma reputação de uma nação que orgulha-se
de si mesmo por seu amor ao jogo limpo e respeito pelo Estado de Direito.
Afirmamos nossa alta moral quando se trata de direitos humanos. Fomos uns dos
primeiros a assinar a Convenão de Genebra de 1929 sobre o tratamento humano de
prisioneiros de guerra (PdG).
É claro, você poderia pensar, os britânicos evitaram a
tortura? Mas você pode estar errado, como a minha pesquisa mostrou do que
ocorreu a portas fechadas décadas atrás.
Foi em 2005 durante meu trabalho como repórter investigativo
que eu topei com uma menção velada de um centro de detenção da Segunda Guerra
Mundial conhecido como Gaiola Londrina. Ele recebeu um número de requisição de
Liberdade de Informação para o Departamento estrangeiro antes que os arquivos
governamentais fossem relutantemente liberados.
Deles, um mundo sinistro foi revelado – de um centro de
tortura que os militares britânicos operaram durante os anos 1940, em segredo
completo, no coração de uma das vizinhanças mais exclusivas da capital.
Milhares de alemães passaram pela unidade que tornou-se
conhecida como Gaiola Londrina, onde
eles foram surrados, impedidos de dormir e forçados a assumir posições
estressantes por dias.
Para alguns, foi dito que eles seriam assassinados e seus
corpos secretamente enterrados. Outros foram ameaçados com cirurgia desnecessária
conduzida por pessoal sem formação médica. Os guardas regozijavam que eles eram
“a Gestapo Inglesa”.
A gaiola londrina era parte de uma rede de nove “gaiolas”
através da Grã-Bretanha administrada pela Seção de Interrogação de PdG (PWIS),
que ficou sob a responsabilidade da Diretoria de Inteligência Militar.
Três, em Doncaster, Kempton Park e Lingfield, foram
rapidamente convertidas em pistas de corrida. Uma outra estava no piso do Preston North End Futebol Clube. A
maioria era administrada de forma bondosa.
Mas os prisioneiros que eram considerados possuírem
informação valiosa eram levados para uma unidade ultra-secreta localizada em
uma linha de mansões grandiosas vitorianas em Kensington Palace
Gardens , na época (assim como hoje) um dos locais mais
badalados de Londres.
Hoje, a rua
arborizada a poucos passos do
Palácio de Kensington é o lar de embaixadores
e bilionários, sultões e príncipes. As
casas mudam de mão por £50
milhões ou mais.
No
entanto, foi aqui, há sete décadas, em
cinco salas de interrogatório, em celas e na sala da guarda em
números seis, sete e oito no Palácio de Kensington Gardens que nove oficiais, assistidos por uma dúzia de sub-oficiais,
usaram métodos que eles achavam necessários para arrancar informação dos
suspeitos.
É claro, é crucial colocar estes eventos no contexto. Quando
os centros de interrogação da Grã-Bretanha apareceram pela primeira – verão de
1940 – as forças alemãs estavam atravessando a França e os Países baixos, e a
Grã-Bretanha estava lutando por sua sobrevivência. As apostas não poderiam ter sido mais altas.
Nos anos seguintes, grandes partes das cidades britânicas
foram deixadas em ruínas, centenas de milhares de militares e civis morreram, e
mal passava um dia sem uma evidência aparecer de uma nova atrocidade nazista.
Não é preciso dizer de que havia a percepção de que os prisioneiros alemães
deveriam sofrer nos centros de interrogação britânicos.
E deveria também ser dito que o que ocorreu dentro de suas
paredes é insignificante quando comparado aos horrores que os nazistas fizeram
com milhões de prisioneiros.
Então, como podemos estar certos dos métodos usados na
Gaiola Londrina? Porque o homem que a gerenciou o admitiu – e foi abafado por
meio século por um sistema que temia a vergonha de que sua estória poderia
prejudicar uma Grã-Bretanha que estava lutando pela honestidade, decência e
Estado de Direito.
O homem era o Coronel Alexander Scotland, um mestre conhecido
nas técnicas da interrogação. Após a guerra, ele escreveu um relato franco de
suas atividades em suas memórias, nas quais ele lembrava como ele pensava ao
chegar na Gaiola toda manhã: “Abandone toda esperança você que entra aqui.”
Coronel Scotland
Como era de costume, antes da publicação, Scotland submeteu
seu manuscrito ao Departamento de Guerra para publicação em 1954. O pandemônio se instalou. Todas
as quatro cópias foram confiscadas. Todos aqueles que sabiam de seu conteúdo
foram silenciados com ameaças de processo pelo Ato de Segredos Oficiais.
O que causou grande consternação foi sua admissão de que os
horrores continuaram após a guerra, quando os interrogadores mudaram da
obtenção de inteligência militar para garantir confissões de crimes de guerra.
Dos 3.573 prisioneiros que passaram pelo Palácio de Kensington Gardens, mais de 1.000 foram persuadidos a assinar uma confissão ou dar testemunho para uso nos processos de crimes de guerra.
Fritz Knöchlein, um antigo tenente-coronel da Waffen-SS, era
um desses. Ele era suspeito de ordenar o fuzilamento de 124 soldados britânicos
que se renderam em Le
Paradis no norte da França durante a evacuação de Dunquerque
em 1940. Sua defesa era de que ele nem mesmo estava lá.
Em seu julgamento, ele afirmou que ele foi torturado na
Gaiola Londrina após a guerra. Ele foi desprovido de sono por quatro dias e
noites após chegar em outubro de 1946 e forçado a dar voltas em círculos por
quatro horas enquanto era chutado por um guarda a cada volta completa.
Ele foi obrigado a lavar escadas e banheiros com um pequeno
pano, por dias, enquanto rajadas de água eram lançadas contra ele. Se ele
ousasse descansar, ele era espancado. Ele também foi forçado a correr em
círculos no piso da casa enquanto carregava pesadas lenhas e tambores. Quando
ele reclamava, o tratamento simplesmente ficava pior.
Mas ele não era o único. Ele disse que homens eram
repetidamente surrados na cara e tinham os cabelos arrancados de suas cabeças.
Um companheiro de cela implorou para ser morto porque ele não agüentava mais
tanta brutalidade.
Contudo, todas as acusações de Knöchlein foram ignoradas. Ele
foi considerado culpado e enforcado.
Suspeitos em outro crime de guerra tenebroso – o fuzilamento
de 50 oficiais da RAF que fugiram de um campo de prisioneiros, o Stalag Luft
III, no qual tornou-se como “Fugindo do Inferno” (em inglês, The Great Escape, filme produzido em
1962) – também passaram pela Gaiola.
Dos 21 acusados, 14 foram enforcados após um julgamento de
crimes de guerra em
Hamburgo. Muitos confessaram somente após terem sido
interrogados por Scotland e seus homens. Na corte, eles protestaram que eles
haviam sido submetidos a fome, chicoteados e sistematicamente surrados. Alguns
disseram que eles haviam sido ameaçados com ferros em brasa e “ameaçados com
dispositivos de choque elétrico”.
Scotland, é claro, negou as alegações de tortura, indo de
julgamento em julgamento para dizer que seus acusadores estavam mentindo.
Foi mais do que surpresa então, que poucos anos depois ele
tenha desejado esclarecer sobre as técnicas que ele empregava na Gaiola
Londrina.
Em suas memórias, ele esclareceu que um número de homens
foram forçados a auto-incriminar-se. Um general foi sentenciado à morte em 1946
após assinar uma confissão na Gaiola enquanto, nas palavras de Scotland, “deprimiu-se
intensamente após vários exames.”
Um oficial naval foi sentenciado com base numa confissão que
Scotland disse que ele assinou apenas após ter sido “sujeito a tarefas
degradantes.”
Scotland também soube que um dos homens acusado dos
assassinatos do “Fugindo do Inferno” foi para a forca apesar dele ter
confessado após ter sido – nas próprias palavras de Scotland – “trabalhado
psicologicamente”. Em seu julgamento, o homem insistiu que ele foi “trabalhado”
também fisicamente.
Outros
não compartilharam da avidez de Scotland de orgulhar-se do que havia sido feito
em Kensington. Um conselheiro legal do MI5 que leu seu manuscrito concluiu que
Scotland e seus assistentes interrogadores eram culpados de um “rompimento
claro” da Convenção de Genebra.
Eles
poderiam ter enfrentado acusações de crimes de guerra por forçar prisioneiros a
permanecerem acordados 24 horas por dia; forçá-los a ajoelhar-se enquanto eram
surrados na cabeça; ameaçá-los de morte; ameaçá-los de intervenção cirúrgica
por outro prisioneiro sem qualificação médica.
Intimidado
pelo embaraço que seu manuscrito causaria se fosse revelado, o Departamento de
Guerra e o Departamento Estrangeiro declararam que ele jamais seria visto à luz
do dia.
Dois anos
depois, contudo, eles foram forçados a fazer um acordo com o autor após este
ameaçar publicar seu livro em outro país. Ele foi avisado que jamais
recuperaria o manuscrito original, mas um acordo foi feito no qual toda linha
de material incriminador foi expurgada.
Uma
versão altamente censurada da Gaiola Londrina convenientemente apareceu nas
livrarias em 1957.
Mas
funcionários no Departamento de Guerra, e seus sucessores no Ministério da
Defesa, permaneceram encrencados.
Anos depois, em 1979, os editores de Scotland escreveram ao Ministério
da Defesa pedindo uma cópia do manuscrito original pelo agora falecido coronel
para os seus arquivos.
O pedido causou pânico, pois os
servidores civis tentaram esclarecer as razões para negar o pedido. Mas, no
final, eles de forma silenciosa depositaram uma cópia no que é agora os
Arquivos Nacionais em Kew, onde permaneceu despercebido – até que eu o
encontrei um quarto de século depois.
Há mais para se dizer a respeito da
Gaiola Londrina? Quase que positivamente. Mesmo agora, alguns dos arquivos do
Ministério da Defesa permanecem além de qualquer alcance público.
Scotland, seus interrogadores,
técnicos e datilógrafos, e os guardas brutamontes deixaram as instalações em
janeiro de 1949. As casas permaneceram desocupadas por muitos anos.
Eventualmente, as de número seis e
sete foram alugadas para a União Soviética, que estava procurando um local para
sua nova embaixada. Hoje, elas pertencem à chancelaria da embaixada da Rússia.
A de número oito – onde é estimado que
os piores excessos tenham sido feitos – permanece vazia. Ela era muito grande
para ser um lar familiar nos anbos do pós-guerra e no interior muito pobre para
sofrer reforma e converter-se em escritório. Por volta de 1955, a construção
ficou abandonada e foi vendida a um desenvolvedor, que a trancou e construiu
uma quadra com três flats luxuosos. Um que foi colocado à venda em 2006 foi
estimado em £ 13,5 milhões.
A Gaiola não foi, entretanto, o
único centro secreto de interrogação da Grã-Bretanha durante e após a Segunda
Guerra Mundial. O MI5 também operou um centro de interrogação, codificado como
Campo 020, em Latchmere House, uma mansão vitoriana próximo de Ham Common no
sudoeste de Londres, cujos 30 quartos foram convertidos em celas com microfones
escondidos.
O primeiro dos espiões alemães que
chegou à Grã-Bretanha em setembro de 1940 foi levado até lá. Informação vital
sobre a iminente invasão alemã foi conseguida com grande rapidez. Isto indica o
uso de métodos extremos, mas estes eram dias desesperados exigindo medidas
desesperadas. No comando estava o Coronel Robin Stephens, conhecido como “Olho
de Lata”, por causa do monóculo fixado em seu olho direito.
Coronel Stephens
Não era um termo de afeição. O
objeto de interrogação, Stephens disse aos seus oficiais, era simples: “A
verdade no menor tempo possível.” Um memorando ultra-secreto falava de “métodos
especiais”, mas não especificava.
Ele arrumou um quarteirão de 92 celas
adicionais para serem adicionadas a Latchmere House, mais uma sala de punições –
conhecida deprimentemente como Cela 13 – que era completamente exposta, com
paredes polidas e um piso de linóleo.
Cerca de 500 pessoas passaram pelos
portões do Campo 020. Principal entre eles estavam os espiões alemães, muitos
dos quais eram “convertidos” e convencidos – ou talvez forçados – a trabalhar
para o MI5.
Seus
primeiros ocupantes eram os membros da União Britânica de Fascistas. Alguns
deles eram mantidos em celas brilhantemente luminosas 24 horas por dia, outras
celas eram mantidas em total escuridão.
Muitos
prisioneiros foram submetidos a simulações de execução e eram surrados pelos
guardas. Alguns eram aparentemente mantidos nús por meses.
O Campo
020 tinha um médico residente, Harold Dearden, um psiquiatra que planejava
regimes de fome e sono e privação sensorial para quebrar a força de vontade dos
internos. Ele experimentou técnicas de tormento que deixava poucas marcas –
métodos que poderiam ser negados pelos torturadores e que servidores civis e
ministros do governo poderiam desconhecer.
Estas
técnicas foram novamente utilizadas após a guerra em uma instalação britânica em
Bad Nenndorf, uma cidade turística alemã, em um dos campos de internamento para
aqueles considerados uma ameaça à ocupação aliada.
Em quatro
anos após a guerra, 95.000 pessoas foram internadas na zona britânica da
Alemanha ocupada. Alguns
foram interrogados pelo que agora chamamos
Divisão de Inteligência.
No comando
de Bad Nenndorf estava “Olho de Lata” Stephens, ligado ao MI5, e experiente de
sua época no Campo 020. Um interno lembrou dele fazendo perguntas enquanto
batia nos prisioneiros.
Nos
próximos dois anos, 372 homens e 44 mulheres passariam por suas mãos. Um
prisioneiro alemão lembrou do que lhe disse um oficial da inteligência
britânica: “Não estamos ligados a quaisquer regras ou regulamentos. Não damos a
mínima se você vai deixar este lugar numa maca ou em um carro funerário.”
Ele foi
colocado para dormir em um piso molhado na temperatura de -20ºC por três dias.
Quatro de seus dedos do pé tiveram que ser amputados por causa do congelamento.
Um médico
em um hospital próximo reclamou sobre o número de detentos levados a ele sujos,
confusos e sofrendo de ferimentos múltiplos e congelamento. Muitos estavam
dolorosamente magros após meses de inanição. Alguns acabaram morrendo.
O regime
era pensado para enfraquecer, humilhar e intimidar os prisioneiros.
Com as reclamações
surgindo, um comitê britânico de inquérito foi estabelecido para investigar o
que estava sendo feito em Bad Nenndorf. Ele concluiu que as alegações dos
antigos prisioneiros de assalto físico eram substancialmente corretas. Stephens
e quatro outros oficiais foram presos e Bad Nenndorf abruptamente fechada.
Mas havia
um dilema para o governo trabalhista. As consequências políticas poderiam ser
profundamente desastrosas. Havia outros centros de interrogação semelhantes na
Alemanha.
Do topo,
vieram ações urgentes para colocar as coisas nos trilhos novamente.
A corte
marcial de Stephens por mau tratamento de prisioneiros foi feita a portas
fechadas. Ele não negou nenhum dos horrores. Sua defesa era de que ele não
tinha ideia de que os prisioneiros sob sua custódia eram surrados, chicoteados,
congelados, privados de sono e levados à morte por fome.
Esta foi
a defesa que foi oferecida – mal sucedida – pelos comandantes dos campos de
concentração nazistas nos julgamentos de crimes de guerra. Mas ele foi
absolvido.
A
suspeita permanece de que ele escapou porque, se as crueldades ocorreram em Bad
Nenndorf, então elas haviam sido autorizadas pelos ministros do governo.
* extraído do livro “Cruel Britannia”, do autor.
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