terça-feira, 6 de junho de 2017

USS Liberty: A trapalhada letal de Israel

Mariana Weber


Era o quarto dia do conflito que mais tarde ficaria conhecido como a Guerra dos Seis Dias. Israel já aniquilara a força aérea de seus oponentes árabes e tomara territórios como a península de Sinai. Ali perto, a cerca de 25 quilômetros da costa, um navio espião americano patrulhava o Mar Mediterrâneo. Apesar de os Estados Unidos não estarem envolvidos oficialmente nas hostilidades, a embarcação foi atacada por jatos e barcos torpedeiros, que – soube-se mais tarde – pertenciam às forças armadas israelenses.

Sob o fogo de metralhadoras, foguetes, bombas de napalm e torpedos, 34 dos 290 homens a bordo do USS Liberty morreram naquela tarde de 8 de junho de 1967. Outros 171 ficaram feridos. Os sobreviventes seguiram com o navio perfurado em mais de 800 pontos, por 17 horas, até encontrarem socorro.

Israel logo assumiu a autoria do ataque, pedindo desculpas e informando que havia confundido a embarcação com um navio egípcio. Tripulantes do Liberty, no entanto, insistem em afirmar que a investida foi deliberada, pois o navio ostentava uma grande bandeira americana e havia sido sobrevoado por jatos israelenses várias vezes antes do bombardeio. A passagem dos aviões, disseram os sobreviventes, não chegou a causar preocupação – afinal, eles eram aliados.

Mas o ataque foi uma grande surpresa. O tenente James Ennes Jr. tinha acabado de cumprir seu turno como vigia no convés quando o bombardeio começou. “Inicialmente, não pensamos que os agressores eram israelenses, já que os aviões não eram identificados, e Israel dizia-se amigo da América”, conta Ennes, atingido por disparos de metralhadora, logo no início da ofensiva. “Fui gravemente ferido na primeira rajada e tive a perna esquerda quebrada. Passei o ano seguinte me recuperando.”

A investida de dois Mirages III pegou a tripulação desprevenida. Foguetes e projéteis de metralhadora de 30 milímetros atingiram o navio da proa à popa, matando e ferindo tripulantes, ateando fogo em barris de combustível e destruindo antenas. Aos Mirages juntaram-se dois Super-Mysteres, que descarregaram bombas de napalm. Quando a esquadrilha se afastou, o navio estava em chamas.

Ennes contou o que viu e ouviu de outros sobreviventes no livro Assault on the Liberty, lançado em 1980: “O tenente Toth, ainda carregando meus relatórios de observação não enviados, recebeu um míssil, que transformou seus restos mortais em detritos fumegantes. O marinheiro Salvador Payan permaneceu vivo com dois nacos de metal afundados em seu crânio. O guarda-marinha David Lucas foi atingido por um fragmento de míssil no cerebelo”, escreveu.

Ferido na perna, o comandante do navio, capitão William Loren McGonagle, continuou a coordenar as atividades da tripulação e a distribuir ordens. Ele permaneceria na ponte de comando até o navio estar fora de perigo e os feridos serem transferidos para um destróier da Sexta Frota Americana. Pela atuação no episódio, receberia uma medalha de honra. Na sala de máquinas, homens trabalhavam agachados no escuro, sob chuvas de metal em brasa e cercados por fumaça, para manter o Liberty navegando. Uma equipe combatia focos de incêndio enquanto outra consertava equipamentos para enviar um pedido de socorro – todas as antenas tinham sido danificadas. Decodificadores eram destruídos manualmente e documentos secretos queimavam dentro de uma cesta de lixo. Feridos eram carregados para uma enfermaria improvisada.

Quando o ataque aéreo cessou, três barcos torpedeiros aproximaram-se e pediram que o Liberty se identificasse. O capitão McGonagle deu ordem para que seus homens não atirassem e, na ausência de outros recursos de comunicação, tentou sinalizar com uma lâmpada de mão. Sem ouvir o comandante, um marinheiro abriu fogo com uma das quatro metralhadoras fixas que compunham o arsenal de defesa do Liberty. Outra arma também disparou, num provável acidente causado por uma explosão de munição. A esquadra israelense respondeu com torpedos. Um deles abriu um rombo no lado direito do casco do navio, atingindo em cheio a área reservada do setor de inteligência.

De acordo com a versão de Israel, foi só ao chegar mais perto do navio que um dos torpedeiros notou marcações dos Estados Unidos em um bote salva-vidas. Em seguida, viu no casco a inscrição GTR-5 (General Technical Research Ships) – embarcações equipadas com escuta eletrônica para coletar dados de inteligência costumavam ser chamadas de navios de pesquisas técnicas gerais. Era hora de enviar desculpas ao escritório da Marinha americana em Tel-Aviv.

Trapalhadas e confusões

Segundo as investigações israelenses, uma série de coincidências, mal-entendidos e trapalhadas levou ao ataque do Liberty. Para começar, a identificação do navio americano feita de manhã por jatos israelenses acabou mais tarde apagada dos quadros de controle. A explosão de um depósito de munição em El Arish, no Sinai, foi confundida com um bombardeio vindo do mar. Barcos torpedeiros foram enviados para investigar e, ao avistarem o navio, pediram ajuda área.

Os pilotos dos jatos dizem não ter visto nenhuma bandeira americana. Seguiram então a orientação do chefe das Forças Armadas, Yitzhak Rabin – que décadas depois se tornaria primeiro-ministro –, para afundar qualquer embarcação desconhecida. Depois de atacar, um deles notou a presença de letras ocidentais no Liberty, o que descartaria a possibilidade de se tratar de um navio árabe. Um aviso de cessar-fogo chegou a ser dado, mas os torpedeiros dizem não tê-lo recebido. Quando estes perceberam as inscrições, o estrago já estava feito.
O lado americano também contribuiu com sua parcela de confusão. Uma ordem para o Liberty afastar-se da costa ficou presa no sobrecarregado sistema de comunicações da Marinha e não chegou a tempo ao capitão McGonagle, que manteve o plano de circular perto do litoral.

A exata natureza da missão do Liberty até hoje não foi revelada, mas acredita-se que estivesse ligada à espionagem das relações entre egípcios e soviéticos – havia especialistas em árabe e russo a bordo, e nenhum em hebraico. “Não tenho dúvida de que a missão estava relacionada ao monitoramento regular da Marinha soviética no Mediterrâneo, ainda que pudesse haver também algo específico”, diz Samuel Feldberg, cientista político do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (Nupri).

Quando o inquérito israelense concluiu que não havia como apontar culpados pelo incidente, as autoridades americanas aceitaram o resultado. Veteranos do Liberty, no entanto, ainda lutam para que o caso seja reconhecido como um crime de guerra. “A tripulação sentiu que a audiência da Corte Naval (feita nos Estados Unidos) foi manipulada”, diz John Borne, professor de História Americana que escreveu uma tese sobre o caso. “Eles querem uma nova audiência, mas até agora não conseguiram”, afirma.

De acordo com os acusadores, os motivos para Israel atacar deliberadamente variam desde uma tentativa de apagar provas sobre assassinatos de prisioneiros até uma manobra para evitar que os americanos obtivessem informações sobre a ofensiva contra as colinas de Golã, na Síria.

Após o ataque, o Liberty navegou até Malta, seguido por barcos encarregados de resgatar ou destruir qualquer papelada que pudesse ter caído pelo caminho. No porto, passou por uma faxina para a retirada de corpos e documentos e sofreu reparos que o permitiram voltar para os Estados Unidos. Em 1968, Israel pagou cerca de 7 milhões de dólares às famílias das vítimas e aos feridos e, 12 anos depois, outros 6 milhões de dólares pelos danos materiais. Em 1970, o navio de 7 725 toneladas foi vendido como sucata.

Participação americana: somente diplomática?

Pelo menos oficialmente, os Estados Unidos não tiveram envolvimento efetivo na Guerra dos Seis Dias – sua participação resumiu-se à diplomacia, que tentou evitar o início do conflito com a formação de um comboio internacional para atravessar os estreitos de Tiran, fechados pelos egípcios. Mas, antes de a proposta vingar, Israel já tinha atacado o Egito.

Apesar de os envolvidos negarem, não faltaram especulações sobre uma possível interferência dos Estados Unidos a favor de Israel, seja com o fornecimento de dados de inteligência, seja com o auxílio de aviões. Segundo o cientista político Samuel Feldberg, a presença do Liberty perto da zona de combate não é indício desse envolvimento. “O fato de o navio estar na região era corriqueiro. O Mediterrâneo era uma área de intensa atividade na Guerra Fria”, afirma.

Ação fulminante, tensão duradoura

O quadro geopolítico do Oriente Médio foi radicalmente modificado pela Guerra dos Seis Dias, que resultou na anexação por Israel, em junho de 1967, da Faixa de Gaza, da Cisjordânia, das Colinas de Golã e da península de Sinai. Pouco antes do conflito, as hostilidades cresciam na fronteira israelense com a Síria, palco de combates aéreos cada vez mais frequentes. Um acordo entre os exércitos do Egito e da Jordânia era assinado e, na península de Sinai, o presidente egípcio, Gamal Abdel Nasser, anunciou o fechamento dos estreitos de Tiran, uma passagem vital para Israel. Foi o que bastou para que, em 5 de junho, os israelenses iniciassem uma ofensiva preventiva contra o Egito, destruindo a maior parte de sua força aérea ainda estacionada em solo. A Jordânia também se envolveu e acabou derrotada. Depois foi a vez da Síria.

Em seis dias, Israel saiu vitorioso e fortaleceu-se como um aliado dos Estados Unidos e de outras potências ocidentais contra os países alinhados ao regime soviético no Oriente Médio. A tensão na região, no entanto, estava longe de acabar, e muitas das disputas das décadas seguintes tiveram relação com os territórios ocupados em 1967.


Tópico Relacionado

Como o Extremismo Sionista tornou-se um problema para a Espionagem britânica


http://epaubel.blogspot.com.br/2014/12/como-o-extremismo-sionista-tornou-se-um.html

Nenhum comentário: