Mariana Weber
Era o quarto dia do conflito que mais tarde ficaria
conhecido como a Guerra dos Seis Dias. Israel já aniquilara a força aérea de
seus oponentes árabes e tomara territórios como a península de Sinai. Ali
perto, a cerca de 25 quilômetros da costa, um navio espião americano patrulhava
o Mar Mediterrâneo. Apesar de os Estados Unidos não estarem envolvidos
oficialmente nas hostilidades, a embarcação foi atacada por jatos e barcos
torpedeiros, que – soube-se mais tarde – pertenciam às forças armadas
israelenses.
Sob o fogo de metralhadoras, foguetes, bombas de
napalm e torpedos, 34 dos 290 homens a bordo do USS Liberty morreram naquela
tarde de 8 de junho de 1967. Outros 171 ficaram feridos. Os sobreviventes
seguiram com o navio perfurado em mais de 800 pontos, por 17 horas, até
encontrarem socorro.
Israel logo assumiu a autoria do ataque, pedindo
desculpas e informando que havia confundido a embarcação com um navio egípcio.
Tripulantes do Liberty, no entanto, insistem em afirmar que a investida foi
deliberada, pois o navio ostentava uma grande bandeira americana e havia sido
sobrevoado por jatos israelenses várias vezes antes do bombardeio. A passagem
dos aviões, disseram os sobreviventes, não chegou a causar preocupação –
afinal, eles eram aliados.
Mas o ataque foi uma grande surpresa. O tenente
James Ennes Jr. tinha acabado de cumprir seu turno como vigia no convés quando
o bombardeio começou. “Inicialmente, não pensamos que os agressores eram
israelenses, já que os aviões não eram identificados, e Israel dizia-se amigo
da América”, conta Ennes, atingido por disparos de metralhadora, logo no início
da ofensiva. “Fui gravemente ferido na primeira rajada e tive a perna esquerda
quebrada. Passei o ano seguinte me recuperando.”
A investida de dois Mirages III pegou a tripulação
desprevenida. Foguetes e projéteis de metralhadora de 30 milímetros atingiram o
navio da proa à popa, matando e ferindo tripulantes, ateando fogo em barris de
combustível e destruindo antenas. Aos Mirages juntaram-se dois Super-Mysteres,
que descarregaram bombas de napalm. Quando a esquadrilha se afastou, o navio
estava em chamas.
Ennes contou o que viu e ouviu de outros
sobreviventes no livro Assault on the Liberty, lançado em 1980: “O tenente Toth,
ainda carregando meus relatórios de observação não enviados, recebeu um míssil,
que transformou seus restos mortais em detritos fumegantes. O marinheiro
Salvador Payan permaneceu vivo com dois nacos de metal afundados em seu crânio.
O guarda-marinha David Lucas foi atingido por um fragmento de míssil no
cerebelo”, escreveu.
Ferido na perna, o comandante do navio, capitão
William Loren McGonagle, continuou a coordenar as atividades da tripulação e a
distribuir ordens. Ele permaneceria na ponte de comando até o navio estar fora
de perigo e os feridos serem transferidos para um destróier da Sexta Frota
Americana. Pela atuação no episódio, receberia uma medalha de honra. Na sala de
máquinas, homens trabalhavam agachados no escuro, sob chuvas de metal em brasa
e cercados por fumaça, para manter o Liberty navegando. Uma equipe combatia
focos de incêndio enquanto outra consertava equipamentos para enviar um pedido
de socorro – todas as antenas tinham sido danificadas. Decodificadores eram
destruídos manualmente e documentos secretos queimavam dentro de uma cesta de
lixo. Feridos eram carregados para uma enfermaria improvisada.
Quando o ataque aéreo cessou, três
barcos torpedeiros aproximaram-se e pediram que o Liberty se identificasse. O
capitão McGonagle deu ordem para que seus homens não atirassem e, na ausência
de outros recursos de comunicação, tentou sinalizar com uma lâmpada de mão. Sem
ouvir o comandante, um marinheiro abriu fogo com uma das quatro metralhadoras
fixas que compunham o arsenal de defesa do Liberty. Outra arma também disparou,
num provável acidente causado por uma explosão de munição. A esquadra
israelense respondeu com torpedos. Um deles abriu um rombo no lado direito do
casco do navio, atingindo em cheio a área reservada do setor de inteligência.
De acordo com a versão de Israel, foi só ao chegar
mais perto do navio que um dos torpedeiros notou marcações dos Estados Unidos
em um bote salva-vidas. Em seguida, viu no casco a inscrição GTR-5 (General
Technical Research Ships) – embarcações equipadas com escuta eletrônica para
coletar dados de inteligência costumavam ser chamadas de navios de pesquisas
técnicas gerais. Era hora de enviar desculpas ao escritório da Marinha
americana em Tel-Aviv.
Trapalhadas e confusões
Segundo as investigações israelenses, uma série de
coincidências, mal-entendidos e trapalhadas levou ao ataque do Liberty. Para
começar, a identificação do navio americano feita de manhã por jatos
israelenses acabou mais tarde apagada dos quadros de controle. A explosão de um
depósito de munição em El Arish, no Sinai, foi confundida com um bombardeio
vindo do mar. Barcos torpedeiros foram enviados para investigar e, ao avistarem
o navio, pediram ajuda área.
Os pilotos dos jatos dizem não ter visto nenhuma
bandeira americana. Seguiram então a orientação do chefe das Forças Armadas,
Yitzhak Rabin – que décadas depois se tornaria primeiro-ministro –, para
afundar qualquer embarcação desconhecida. Depois de atacar, um deles notou a
presença de letras ocidentais no Liberty, o que descartaria a possibilidade de
se tratar de um navio árabe. Um aviso de cessar-fogo chegou a ser dado, mas os
torpedeiros dizem não tê-lo recebido. Quando estes perceberam as inscrições, o
estrago já estava feito.
O lado americano também contribuiu com sua parcela
de confusão. Uma ordem para o Liberty afastar-se da costa ficou presa no
sobrecarregado sistema de comunicações da Marinha e não chegou a tempo ao
capitão McGonagle, que manteve o plano de circular perto do litoral.
A exata natureza da missão do Liberty até hoje não
foi revelada, mas acredita-se que estivesse ligada à espionagem das relações
entre egípcios e soviéticos – havia especialistas em árabe e russo a bordo, e
nenhum em hebraico. “Não tenho dúvida de que a missão estava relacionada ao
monitoramento regular da Marinha soviética no Mediterrâneo, ainda que pudesse
haver também algo específico”, diz Samuel Feldberg, cientista político do
Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo
(Nupri).
Quando o inquérito israelense concluiu que não
havia como apontar culpados pelo incidente, as autoridades americanas aceitaram
o resultado. Veteranos do Liberty, no entanto, ainda lutam para que o caso seja
reconhecido como um crime de guerra. “A tripulação sentiu que a audiência da
Corte Naval (feita nos Estados Unidos) foi manipulada”, diz John Borne,
professor de História Americana que escreveu uma tese sobre o caso. “Eles
querem uma nova audiência, mas até agora não conseguiram”, afirma.
De acordo com os acusadores, os motivos para Israel
atacar deliberadamente variam desde uma tentativa de apagar provas sobre
assassinatos de prisioneiros até uma manobra para evitar que os americanos
obtivessem informações sobre a ofensiva contra as colinas de Golã, na Síria.
Após o ataque, o Liberty navegou até Malta, seguido
por barcos encarregados de resgatar ou destruir qualquer papelada que pudesse
ter caído pelo caminho. No porto, passou por uma faxina para a retirada de
corpos e documentos e sofreu reparos que o permitiram voltar para os Estados
Unidos. Em 1968, Israel pagou cerca de 7 milhões de dólares às famílias das
vítimas e aos feridos e, 12 anos depois, outros 6 milhões de dólares pelos
danos materiais. Em 1970, o navio de 7 725 toneladas foi vendido como sucata.
Participação americana: somente diplomática?
Pelo menos oficialmente, os Estados
Unidos não tiveram envolvimento efetivo na Guerra dos Seis Dias – sua
participação resumiu-se à diplomacia, que tentou evitar o início do conflito
com a formação de um comboio internacional para atravessar os estreitos de
Tiran, fechados pelos egípcios. Mas, antes de a proposta vingar, Israel já
tinha atacado o Egito.
Apesar de os envolvidos negarem, não
faltaram especulações sobre uma possível interferência dos Estados Unidos a
favor de Israel, seja com o fornecimento de dados de inteligência, seja com o
auxílio de aviões. Segundo o cientista político Samuel Feldberg, a presença do
Liberty perto da zona de combate não é indício desse envolvimento. “O fato de o
navio estar na região era corriqueiro. O Mediterrâneo era uma área de intensa
atividade na Guerra Fria”, afirma.
Ação fulminante, tensão duradoura
O quadro geopolítico do Oriente Médio
foi radicalmente modificado pela Guerra dos Seis Dias, que resultou na anexação
por Israel, em junho de 1967, da Faixa de Gaza, da Cisjordânia, das Colinas de
Golã e da península de Sinai. Pouco antes do conflito, as hostilidades cresciam
na fronteira israelense com a Síria, palco de combates aéreos cada vez mais
frequentes. Um acordo entre os exércitos do Egito e da Jordânia era assinado e,
na península de Sinai, o presidente egípcio, Gamal Abdel Nasser, anunciou o fechamento
dos estreitos de Tiran, uma passagem vital para Israel. Foi o que bastou para
que, em 5 de junho, os israelenses iniciassem uma ofensiva preventiva contra o
Egito, destruindo a maior parte de sua força aérea ainda estacionada em solo. A
Jordânia também se envolveu e acabou derrotada. Depois foi a vez da Síria.
Em seis dias, Israel saiu vitorioso e fortaleceu-se como um aliado dos
Estados Unidos e de outras potências ocidentais contra os países alinhados ao
regime soviético no Oriente Médio. A tensão na região, no entanto, estava longe
de acabar, e muitas das disputas das décadas seguintes tiveram relação com os
territórios ocupados em 1967.
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