terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Sete mitos da conquista da América

Beto Gomes


Nem bem o sol iluminou o lago Texcoco, no imenso Vale do México, os dois maiores líderes do Novo Mundo colocaram-se frente a frente. Era 8 de novembro de 1519 e havia anos que espanhóis e nativos se pegavam em violentas batalhas nas terras recém-descobertas da América. De um lado, Hernán Cortez personificava a figura do conquistador europeu como ninguém. Do outro, o todo-poderoso imperador asteca Montezuma II permanecia impassível. Apesar da expectativa de um encontro amigável, a tensão era tão óbvia quanto inevitável. Espanhóis e astecas trocavam olhares, até que Montezuma desceu de sua pequena tenda e foi em direção aos invasores. Cortez repetiu o gesto. Saltou do cavalo e seguiu ao encontro do imperador. A tensão aumentava a cada passo. Olhos nos olhos, eles esboçaram saudações de respeito mútuo, mas não trocaram mais do que poucas palavras, com a ajuda de um intérprete. De qualquer forma, a diplomacia prevaleceu. E, pacificamente, todos tomaram o rumo de Tenochtitlán, a capital do império asteca. Alguns meses depois, os dois lados voltariam a se encontrar. Mas, desta vez, numa sangrenta batalha que culminaria com a morte de Montezuma e faria de Cortez o homem mais poderoso do América espanhola.

Até hoje, muitos historiadores consideram este episódio como o maior símbolo do encontro entre dois continentes. E não por acaso. Pela primeira vez, um imperador nativo acolheu em suas terras o representante de um povo que estava ali justamente para conquistá-las. Além disso, as diferenças culturais entre os dois grupos nunca estiveram tão expostas quanto naquela manhã de novembro. Estas diferenças, além das idiossincrasias do século 16, ajudaram a perpetuar pelos séculos o que o historiador americano Matthew Restall, professor da Universidade da Pensilvânia, chama de Os Sete Mitos da Conquista Espanhola, que batizam seu livro.

Esses mitos podem ser identificados na figura de Cortez, até hoje citado por sua genialidade militar, pela forma como usou e inovou a tecnologia disponível na época, pela maneira astuta como manipulou “índios supersticiosos” e pelo modo heróico com que levou algumas centenas de espanhóis à vitória, contra um império de milhares de guerreiros. Mas a história não foi bem assim. Desde a primeira vez que Cristóvão Colombo pisou nas ilhas do Caribe, os homens enviados para cá se encarregaram de capitalizar o feito em benefício próprio, aumentando uma coisinha aqui, inventando uma ali.


1. Meia dúzia de aventureiros

O mito dos homens excepcionais e seus feitos extraordinários

Cristóvão Colombo estava em algum lugar do Atlântico, em 1504, quando a rainha da Espanha enviou uma esquadra para prendê-lo e levá-lo acorrentado para a Europa. Desde sua primeira viagem pelo Novo Mundo, seu prestígio já não era o mesmo. Sua insistência na mentira de que havia achado uma nova rota para as Índias, fato que lhe rendeu títulos e status, havia deixado a coroa espanhola irritada depois que Vasco da Gama contornou o Cabo da Boa Esperança e deu aos portugueses a liderança na corrida por um caminho mais curto para o Oriente.

A fama de Colombo estava irreversivelmente abalada, ele caiu em descrédito e tornou-se um pária. Mas como, depois de morto, ele se tornaria um herói? Para Restall, a idéia de que ele foi um visionário, um homem à frente de seu tempo surgiu durante as comemorações do tricentenário da descoberta da América, num país que também acabava de nascer: os Estados Unidos. Colombo foi tomado como símbolo dessa nova terra: aventureiro, destemido, um gênio a frente de seu tempo. “Mas a coisa mais espetacular sobre a visão geográfica de Colombo era a de que estava errada. A percepção de que a Terra era redonda, fato geralmente citado para imputar-lhe a condição de visionário, por exemplo, era comum a qualquer pessoa escolarizada da época”, diz Restall.

Esse é só um exemplo do mito de que a conquista da América só foi possível graças à coragem e à genialidade de meia dúzia de conquistadores e que surgiu desde os primeiros relatos dos colonizadores enviados à Espanha. Para obter a permissão de explorar novas terras, eles precisavam provar que a colonização era rentável e, para tanto, escreviam qualquer lorota: omitiam fatos, inventavam histórias, exaltavam a si mesmos. Hernán Cortez e Francisco Pizarro, responsáveis pelos tombos dos impérios asteca e inca, respectivamente, foram especialmente beneficiados por tais relatos e elevados à categoria de heróis. Biógrafos, cronistas e religiosos que participaram das expedições ajudaram a construir esta imagem, por meio das cartas enviadas à coroa, chamadas de probanzas de mérito (ou “provas de mérito”).

Pelo menos num ponto, porém, os relatos tinham razão: a desvantagem numérica dos espanhóis – fato que os levou a derrotas freqüentemente ignoradas nas tais probanzas de mérito. Como, então, os conquistadores conseguiram expandir seus domínios e subjugar milhares de nativos? A resposta não está na genialidade militar de Cortez ou Pizarro. Em nenhum momento eles apresentaram novas táticas de guerra e, na maior parte do tempo o que fizeram foi seguir rotinas adotadas em conflitos anteriores ao descobrimento. Uma das mais importantes foi a aliança com os nativos (que veremos mais adiante). Mesmo assim, eles não abriram mão de procedimentos igualmente eficientes, mas que nada tinham de inventivos: o uso da violência indiscriminada para intimidar os resistentes. Nos casos extremos, pessoas eram decepadas ou queimadas vivas em praça pública, tinham braços e mãos amputados e suas famílias recebiam seus corpos, o que costumava garantir a submissão de outros nativos.

2. Nem pagos, nem forçados

O mito de que os espanhóis que desembarcaram na América eram todos militares

A esquadra de Colombo mal aportou na praia da ilha de Hispaniola, no Caribe, e um grupo de soldados já estava perfilado na areia. Vestiam armaduras reluzentes, carregavam as mais potentes armas da época e aguardavam apenas a ordem de seu capitão para marchar em direção às terras do Novo Mundo. Disciplinados, estavam prontos para enfrentar o inimigo. Faziam parte de uma grande operação militar. Afinal, eram soldados. Esta cena jamais aconteceu, mas passa a idéia, constantemente repetida em filmes, ilustrações e livros, de que os conquistadores eram militares enviados pelo rei e faziam parte de uma máquina de guerra.

Mas, então, quem eram eles? Nobres aventureiros ou plebeus em busca da terra prometida? A rigor, nem uma coisa, nem outra. Em sua maioria, os espanhóis eram artesãos, comerciantes e empreendedores de pequeno porte, com menos de 30 anos de idade, alguma experiência em viagens desse tipo e sem qualquer treinamento militar. Armavam-se como podiam e entravam na primeira companhia que pudesse lhes render a quantia necessária para investir em outras expedições. Assim, poderiam acumular riquezas até receber as chamadas encomiendas – ou seja, o direito de cobrar taxas e impostos sobre a produção de uma determinada área conquistada e faturar em cima do trabalho de um grupo de nativos.

A maioria dos conquistadores não recebia ajuda financeira da coroa. Em geral, viajava por sua conta e risco em busca de status e dinheiro. Ou, no máximo, tinha um vínculo com eventuais patrocinadores, em nome dos quais as terras recém-descobertas eram exploradas. De qualquer forma, eles não eram pagos, tampouco obrigados a viajar. E muito menos soldados aptos a lutar pelos interesses da Coroa.

3. Guerreiros invisíveis

O mito de que poucos soldados brancos venceram milhares de guerreiros índios

Quando o conquistador Bernal Díaz de Castillo viu a capital asteca pela primeira vez, não conseguiu descrever a visão que teve do alto do Vale do México. A metrópole pontilhada de pirâmides, irrigada por canais navegáveis, engenhosamente construída para ser a referência de outras grandes cidades do império, poderia ser comparada às maiores capitais européias. Uma pergunta talvez lhe tenha surgido: como poucos de nós poderemos subjugá-la? Seguindo o mesmo raciocínio, como apenas centenas de europeus poderiam vencer os milhões de índios espalhados pelo continente? Nem a “genialidade” de seus líderes, a pólvora ou o aço espanhol dariam conta. Há algumas respostas para essas questões.

A primeira é que os espanhóis sempre foram minoria nos campos de batalha da América, mas jamais lutaram sozinhos. Os nativos nunca formaram uma unidade política, nem no caso de astecas e maias, que fosse imune às rivalidades e intrigas. E os conquistadores se aproveitaram, desde muito cedo, dessa desunião, conseguindo formar verdadeiros exércitos índios, dispostos a eliminar seus inimigos. Na primeira vez que Cortez chegou a Tenochtitlán, mais de 6 mil aliados davam cobertura aos espanhóis, que eram cerca de 200. Na batalha final, alguns meses depois, ele conseguiu reunir mais de 200 mil homens para tomar a capital asteca. “As pessoas tendem a imaginar que os povos americanos eram unidos em torno de uma identidade nativa. Na verdade, acontecia o contrário. Quando os espanhóis chegaram à América, encontraram várias tribos rivais, que não precisavam de mais que um empurrãozinho para entrar em conflito”, afirma Restall.

Além disso, no final do século 16, cerca de 100 mil africanos desembarcaram na América. A princípio, eles trabalhavam como serventes e auxiliares dos espanhóis, mas, sempre que necessário, recebiam armas para lutar contra os inimigos. Como recompensa, ganhavam a liberdade e logo eles também se tornavam conquistadores.

4. Sob a tutela do rei

O mito de que, em pouco tempo, toda a América estava sob jugo espanhol

Palavras de Cortez: “Deixei a província de Cempoala totalmente segura e pacificada, com 50 mil guerreiros e 50 cidades. Todos estes nativos têm sido e continuam sendo fiéis vassalos de Vossa Majestade. E acredito que eles sempre serão”. A carta de Cortez enviada ao rei da Espanha dá uma boa idéia de como funcionava a burocracia da conquista. Para o monarca, não bastava o conquistador encontrar uma terra e reivindicar o direito de explorá-la. Ele precisava convencê-lo de que aquela região era economicamente viável, de preferência com minas de ouro e prata, e contava com mão-de-obra para tirar dali tais riquezas. Como resultado, os líderes espanhóis não pensavam duas vezes antes de carregar seus pedidos com informações exageradas.

Essa combinação de fatores contribuiu para a criação do mito de que a conquista total dos povos americanos foi alcançada logo nos primeiros anos da presença espanhola. Muitas cidades, no entanto, resistiram à dominação durante décadas. No Peru, alguns estados independentes só foram dominados depois de 1570, após a morte de líderes como Túpac Amaru. Quando os espanhóis fundaram Mérida, em 1542, boa parte da península de Yucatán, na América Central, permaneceu sob a influência dos maias – e muitas políticas elaboradas por eles sobreviveram até 1880. A experiência espanhola na atual Flórida, nos Estados Unidos, foi ainda mais desastrosa. Pelo menos seis expedições foram enviadas para lá entre 1513 e 1560, quando a região finalmente foi controlada pelos europeus. Mas um dos exemplos mais curiosos vem da bacia do Prata, onde os fundadores de Buenos Aires, em 1520, viraram jantar de tribos canibais.

Outro aspecto que mostra que a conquista não foi total era a relativa autonomia que alguns nativos mantiveram em relação aos seus dominadores – condição sancionada pelos próprios oficiais espanhóis, que procuravam não intervir nas regras que vigoravam antes de eles chegarem. E não por acaso. Esta era mesmo a melhor forma de garantir a manutenção das fontes de trabalho e da produção agrícola. Além disso, membros da elite nativa participavam dos conselhos das cidades coloniais, onde eram tomadas as decisões mais importantes. Ou seja, além de continuar influenciando politicamente, eles mantiveram o status que tinham antes da descoberta.

5, As palavras de La Malinche

O mito de que a falta de comunicação levou ao massacre indígena

Foi na praça central da cidade inca de Cajamarca que Pizarro e Atahualpa se viram pela primeira vez, em 1532, numa espécie de versão peruana do encontro entre Montezuma e Cortez. Ao lado do conquistador, menos de 200 homens armados pareciam não temer os mais de 5 mil nativos leais ao imperador. E, de fato, eles não tinham porque se intimidar: a maioria dos locais não possuía uma arma sequer. O primeiro espanhol a se aproximar de Atahualpa foi um frei dominicano que segurava uma pequena cruz numa das mãos e a Bíblia na outra. Em poucos minutos, a batalha havia começado. Mas, apesar da desvantagem numérica, os invasores conseguiram dizimar um terço dos nativos. Atahualpa foi capturado.

Há várias versões sobre os motivos que causaram a briga e sobre como a batalha de Cajamarca começou. Francisco de Jerez, presente no local, escreveu que o imperador atirou a Bíblia ao chão, porque não a entendia. A blasfêmia teria sido o motivo para Pizarro dar o sinal de ataque. Na versão inca, no entanto, a ofensa partiu dos espanhóis, que teriam se recusado a tomar uma bebida sagrada oferecida por Atahualpa.

É praticamente impossível saber o que aconteceu de fato naquele dia, mas o encontro sangrento entre incas e espanhóis é um bom exemplo de como as supostas falhas na comunicação serviram para justificar as ações dos europeus e, por conseqüência, a própria conquista. Mas estas falhas não eram tão freqüentes assim. O diálogo entre Montezuma e Cortez, por exemplo, apesar de ter gerado diferentes interpretações, mostra que os dois lados podiam se entender muito bem. Isso graças a uma figura central durante todo o processo de colonização: os intérpretes. O papel deles foi tão importante que um dos principais procedimentos de guerra era justamente encontrar e “formar” tradutores. Alguns destes tradutores se deram tão bem que alcançaram status inimagináveis para um nativo. Receberam encomiendas e chegaram a ser citados nas cartas enviadas ao rei. O exemplo mais famoso é o de La Malinche, a amante e intérprete que acompanhou Cortez durante anos e esteve presente no encontro com Montezuma.

6. O fim dos índios

O mito de que a conquista só trouxe desgraça para os nativos

A derrota de Cortez era inevitável. Havia horas que ele e seus guerreiros lutavam contra a união de três exércitos inimigos na grande praça central de Tlaxcala, uma comunidade nativa aliada aos espanhóis, e a derrocada do conquistador se aproximava a cada golpe. Finalmente ele seria vencido. E foi mesmo. Ainda no chão, Cortez pôde ouvir os aplausos efusivos da platéia. Aquela encenação do dia de Corpus Christi ficou conhecida como o evento teatral mais espetacular e sofisticado do ano de 1539. Numa curiosa inversão de papéis, o conquistador interpretou o Grande Sultão da Babilônia e Tetrarca de Jerusalém. O papel dos reis da Espanha, Hungria e França ficou com os nativos da comunidade.

O Corpus Christi de Tlaxcala não foi o único festival do século 16 no Novo Mundo. A imensa maioria das colônias da Mesoamérica e dos Andes encenou, dançou e até representou as batalhas contra os espanhóis. Muitas dessas manifestações culturais sobrevivem até hoje. Mas o curioso é que o objetivo não era reconstruir a conquista como algo traumático. Ao contrário. Para os nativos, os festivais significavam uma celebração de sua integridade e vitalidade cultural. “Eram eventos que transcendiam aquele momento histórico particular e não estavam associados à lembrança de algo ruim. Até porque o sentimento de derrota não era algo comum a todos os povos nativos”, afirma Restall.

Manifestações desse tipo eram apenas uma das formas pelas quais os nativos mostravam que o impacto da conquista não foi tão traumático quanto sugere boa parte da retórica comum. Muitas comunidades mantiveram seu estilo de vida e outras tantas evoluíram rapidamente com a necessidade de se adaptar às novas tecnologias e demandas trazidas pelos espanhóis. Aprenderam novas formas de contar, construir casas, planejar cidades e, sobretudo, guerrear. Assim, houve nativos que enriqueceram com o comércio de alimentos e com o aluguel de mulas. O povo Nahua, por exemplo, depois de lutar ao lado dos espanhóis por anos, organizaram campanhas militares próprias e expandiram seus domínios para além das terras onde hoje estão Guatemala, Honduras e parte do México.

7. Macacos e homens

O mito da superioridade e da predestinação dos europeus

“Os espanhóis têm a governar estes bárbaros do Novo Mundo. Eles são em prudência, ingenuidade, virtude e humanidade tão inferiores aos espanhóis quanto as crianças são para os adultos, e as mulheres, para os homens”, escreveu o filósofo Juan Ginés de Sepúlveda, em 1547. O mito da superioridade espanhola é visto em todos os relatos do período colonial. Para Restall, ele vem desde as primeiras expedições e está ligado à justificativa de que os europeus tinham a aprovação divina para conquistar novas terras. Eles acreditavam que eram os escolhidos de Deus, os encarregados de levar o cristianismo a outros povos.

Existem outros fatores, no entanto, que ajudaram a perpetuar este mito. Um deles combina a crença de que os nativos seriam incapazes de evitar a invasão dos europeus porque eles (os nativos) também acreditavam que os espanhóis eram deuses. De fato, os povos americanos enxergavam os conquistadores como seres poderosos, mas em nenhum momento – nem mesmo nos relatos dos cronistas do período colonial – os nativos comparam os espanhóis a seres supremos, ou deidades. Além disso, a diferença brutal entre as armas dos dois grupos também ajudou a construir a idéia da superioridade espanhola.

Mas Deus não foi o principal aliado dos espanhóis. A expansão dos europeus só foi possível graças a três fatores. O primeiro e mais determinante foram as doenças que os estrangeiros trouxeram. Sem oferecer nenhuma resistência para varíola, sarampo e gripe, os nativos morreram tão rápido que em poucas décadas tribos inteiras foram extintas. O impacto das epidemias foi tão devastador que, um século e meio após a chegada de Colombo, a população de nativos havia caído mais de 90%. Os astecas sentiram o poder desses males. “As ruas estavam tão cheias de gente morta e doente que nossos homens caminhavam sobre corpos”, escreveu o padre Bernardino de Sahagún, quando os conquistadores tomaram Tenochtitlán.

O segundo aliado foi a desunião dos nativos. A rivalidade entre diferentes grupos étnicos e intrigas entre vizinhos levou dezenas de milhares de pessoas a lutarem ao lado dos espanhóis. As armas que os conquistadores trouxeram para estas batalhas são o terceiro fator mais importante. Nas primeiras expedições, várias delas fizeram diferença. Cavalos e até cachorros acabaram entrando nos campos de batalha. Mas a mais eficiente foi mesmo a espada, mais longa e resistente que os machados dos nativos. No campo da guerra, Matthew Restall considera ainda um outro fator. Os nativos lutavam em sua própria terra. Precisavam, portanto, proteger a família, defender suas casas, pensar no plantio, calcular a colheita e fazer o possível para não deixar que a guerra prejudicasse e interferisse no seu dia-a-dia. Por isso, eles sempre estiveram mais dispostos a negociar e a protelar os confrontos com os conquistadores. Já os espanhóis não tinham muito a perder. Basicamente, precisavam se preocupar apenas com suas próprias vidas. E com o que teriam de fazer para continuar conquistando novas cidades e acumulando mais riquezas.


domingo, 26 de fevereiro de 2017

[POL] “Eu fui o criado de Hitler”

Heinz Linge

Daily Mail, 06/08/2009


Em 27 de abril de 1945, Hitler chamou-me em seu escritório. Os russos estavam avançando sobre Berlim e mesmo o Führer – normalmente bem otimista – começou a perceber que a derrota era inevitável.

Ele havia se isolado totalmente, querendo não ver ninguém exceto Eva Braun e eu; nem mesmo querendo celebrar seus 55º. aniversário.

Sem preliminares, Hitler me ordenou: “Gostaria de liberá-lo para sua família.” Eu o interrompi: “Meu Führer, estive com o senhor nos bons tempos e continuarei a está-lo também nos ruins.”

Calmamente, ele aceitou minha insistência. “Tenho outro trabalho pessoal para você. Você deve manter prontos cobertores de lã no meu quarto e gasolina suficiente para duas cremações. Vou me suicidar junto com Eva Braun. Você enrolará nossos corpos nos cobertores, transportá-los para o jardim e então queimá-los.” “Jawohl, mein Führer!,” respondi, tremendo. Não havia nada mais a dizer. Rapidamente – meus joelhos sentindo-se tão duros que eles pareciam colapsar sob mim – deixei Hitler sozinho.

Três dias depois, ele estava morto. Ao abrir o quarto de Hitler, vi algo que jamais esquecerei. Ele e Eva estavam afundados no sofá florido. Hitler tinha dado um tiro em sua têmpora direita. Sua cabeça estava inclinada em direção da parede e seu sangue espalhado no tapete. No seu lado direito estava sentada Eva, suas pernas esticadas, sua face contorcida indicando o modo de sua morte: envenenamento por cianeto.

Dez anos haviam se passado entre o início do meu trabalho para Hitler e este momento, às 15h45m de 30 de abril de 1945.  Um mundo inteiro estava entre o homem a quem jurei ser fiel até a morte, e este cadáver que eu agora tinha que embrulhar em um cobertor, carregar pela escadaria escura e estreita do bunker, colocar em uma cratera criada por artilharia, embeber com gasolina e atear fogo.

O homem que encontrei no verão de 1934 havia sido uma personalidade dominante exalando um carisma arrebatador. O que eu queimei e enterrei sob uma saraivada de tiros dos soviéticos era um velho trêmulo, uma força desvanecida.

Nasci em Bremen em 1913 e era pedreiro quando me alistei na Waffen-SS em minha cidade em 1933. Nunca tive interesse em política, mas um ano depois fui enviado com duas dúzias de outros camaradas à casa de Hitler em Berghof – o mais conhecido de seus quartéis-generais e um lugar onde ele passou muito tempo antes e durante a Segunda Guerra.

Um ano após isso, fui selecionado para servir no estafe particular de Hitler e tornei-me seu criado pessoal logo após o início da guerra em 1939.

Estar diante da presença de Adolf Hitler era o desejo de milhões. Mas a vida com o Führer não era uma rotina.

Meu trabalho era selecionar os documentos matutinos e os primeiros despachos estrangeiros – colocando-os em uma cadeira ao lado de sua cama. Eu o acordava às 11h. Hitler levantava, olhava a correspondência e a lia na cama – ao lado da qual havia um carrinho de chá com livros, jornais, seus óculos e uma caixa de lápis de cor.

Era o responsável por mantê-lo abastecido com materiais de escritório e óculos (ele nunca gostou de ser visto em público com eles, já que pensava ser um sinal de fraqueza). Sempre levava comigo um par de lentes sobressalentes quando viajávamos, já que ele frequentemente as quebrava enquanto as manuseava com as mãos, enquanto divagava sobre um problema. Após sua sessão matutina de leitura, Hitler sempre seguia a mesma rotina – ele se barbearia, retirava seu pijama branco, colocava-o sobre a cama, tomava banho, pegava sua roupa no cabide e a vestia.

Hitler sempre se vestia sozinho e ele fazia isso usando um cronômetro, sendo que minha presença era como a de um árbitro. Ao seu comando Los! acionava o cronômetro e a corrida da vestimenta começava. Quanto mais rápido ele terminava, melhor o seu temperamento. Parado diante do espelho, olhos fechados, ele pedia minha ajuda somente para a gravata-borboleta, que também tinha que ser colocada em tempo recorde. Ele contava os segundos e tão logo eu dizia “pronto” ele abria os olhos e verificava no espelho.

O cabeleireiro e o alfaiate também eram cobrados pela rapidez. O penteado característico de Hitler, o qual sempre ficava sobre sua testa – e seu bigode – chamava a atenção da população. Ele sabia disso e tinha grande orgulho de ambos. Também sabíamos que seu bigode era também um retrato de seu humor. Se ele o espremia contra o lábio superior, estava infeliz e isto era um alerta para todos nós.

Frequentemente era difícil entender Hitler. Às vezes, ele se prendia às coisas mais insignificantes, enquanto que em outras, era excessivo e insensível.

Ele poderia mostrar afeto paterno para uma secretária que havia machucado o dedão do pé, mas era sangue frio quando emitia ordens que enviava milhares para a morte.

O “privilégio” de experimentar sua preocupação não era necessariamente algo agradável. Frequentemente, ele tentava me convencer o quão ruim era o tabagismo. Como seu criado pessoal, não tinha nenhuma opção a não ser escutar.

Quarenta minutos após acordar, Hitler fazia seu café da manhã na biblioteca - um lanche frugal, apenas chá ou leite, biscoitos ou pão fatiado e uma maçã. Durante o café da manhã, ele via o cardápio do almoço.

Dois pratos vegetarianos (ambos incluindo a obrigatória maçã) eram fornecidos a ele para escolher. Hitler havia há muito tempo dispensado a carne, mas se estranhos aparecessem para o almoço, sua comida era cuidadosamente organizada de modo que a ausência de carne não fosse percebida num primeiro olhar.

Pelo fato de Hitler acordar tarde, acontecia de o almoço, geralmente frequentado por uma dúzia de convidados, não ser servido até as 14h30m, horário no qual muitos convidados já haviam saciado sua fome em outros lugares. As refeições de Hitler eram preparadas mornas após uma operação em suas cordas vocais – resultante do ataque por gás que sofreu na Primeira Guerra Mundial – que deixou sua voz sensível.

Sua dieta consistia principalmente de batatas e verduras, um guisado sem carne, e fruta. Hitler eventualmente adicionava cerveja à refeição e vinho em ocasiões especiais quando um brinde era feito. Ele era inflexível quanto ao seu vegetarianismo e ao anti-tabagismo, mas não era oposto ao álcool.

Contudo, ele  achava a embriaguez repulsiva e desistiu da cerveja em 1943, quando começou a engordar nos quadris. Ele achava que o povo alemão não gostaria de ver seu Chanceler gordo.

O jantar não tinha tanta importância, com somente poucos convidados presentes, começando por volta das 20h.

Novamente, é claro, era vegetariano, com Hitler acreditando que o dia mais desastroso do desenvolvimento humano foi no momento em que o homem comeu seu primeiro pedaço de carne. Ele estava convencido de que este modo não-natural de vida era o responsável pelo pequeno tempo de vida humana, entre 60 e 70 anos.

Segundo os cálculos de Hitler, todos os animais cuja dieta era natural viviam oito a dez vezes mais desde o seu período de desenvolvimento até a maturidade plena.

Ele estava convencido de que viveríamos entre 150 e 180 anos se fossemos vegetarianos. Tal visão enfurecia seus médicos, que constantemente tentavam convencê-lo a mudar sua dieta, manter uma rotina de horários e praticar exercícios.

Pelo que ele me disse, sabia que desde o final da Primeira Guerra Mundial ele sofria de gastrite. Às vezes as queixas o faziam dobrar quando pensava que ninguém estava olhando.

Nos dez anos que o conheci, ele constantemente estava preocupado com sua saúde, e seu declínio físico começou bem cedo.

No final de 1942, quando a batalha de Stalingrado atingiu seu momento mais ameaçador, sua mão esquerda começou a tremer. Ele fez de tudo para suprimir isso e a escondia de estranhos pressionando sua mão contra seu corpo ou segurando-a firmemente com a mão direita.

Então, em 1943, ele tornou-se um idoso da noite para o dia. No final de 1944, ele andava com dificuldades – com o corpo arqueado para frente e lateralmente. Se ele queria sentar-se, precisávamos colocar a cadeira para ele.

Apesar da crescente fragilidade física, Hitler fez pouco para proteger-se das tentativas de assassinato. Ele rejeitava medidas de segurança (como entrar discretamente pela porta dos fundos), pois dizia “nenhum trabalhador alemão me causará mal.”

Somente algumas tentativas de assassinato tornaram-se públicas. De outras, ele escapou muito perto – como quando o carro de Himmler foi alvejado numa tentativa clara de acertar Hitler (o qual, por razão desconhecida, viajou no carro no dia anterior).

As únicas precauções que ele tomava eram com a comida – banindo comidas estrangeiras e tendo sua água testada diariamente.

Após a guerra, foi dito que Hitler era tão temeroso do assassinato que ele sempre mantinha as janelas fechadas enquanto viajava de trem. Isto, entretanto, não é verdade. Seus olhos eram intolerantes à luz do Sol. Mesmo luz artificial era capaz de machucá-los.

Não. Hitler acreditava ser sortudo e, de certa forma, ele era. Somente uma vez ele foi atingido por uma bomba, em 20 de julho de 1944. Cerca de 200 estilhaços de madeira foram retirados da perna do Führer, seu uniforme ficou em trapos, seu cabelo ficou chamuscado e preso por cordões.

Mesmo assim, após o incidente, ele ficou calmo, os médicos notando que seu pulso não sofreu alteração. A única indicação fora do normal é que ele permitiu-me ajudá-lo a se vestir, após o longo período de serviço.

Apenas seis meses depois, em dezembro, o clima em Berghof mudou. Nossas esperanças por uma possível guinada na situação da guerra foram esmagadas. As vitórias na frente ocidental não serviram para nada.

A partir daí, Hitler frequentemente falava do passado. Sua saúde estava deteriorando e com ela sua vontade. Ele começou a desconfiar das pessoas que o cercavam. Naqueles dias, não poderia ser mais atencioso e vigilante e o Führer, que confiava em mim cegamente, sabia disso. Ele disse uma vez: “Linge, quando você senta ou fica atrás de mim, sinto-me mais seguro do que se um dos Obergruppenführers (posto mais alto na SS[1]) ficasse em seu lugar.”

Em Berlim, seu aniversário em 20 de abril foi um evento silencioso e apenas sete dias depois ele me disse sobre seus planos de morrer ao lado de Eva.

Ao longo do tempo que passei com ele, testemunhei como ele e Eva viveram como marido e mulher durante as vezes em que ambos estiveram em Berghof. Eles tinham quatro quartos para sua vida íntima: dois quartos e dois banheiros com portas de acesso. Hitler terminaria a maioria das noites sozinho com Eva em seu escritório bebendo chá, enquanto ela descansava com um casaco enquanto bebia vinho espumante.

Como qualquer “esposa”, ela tinha influência sobre seu marido, convencendo-o a afrouxar o racionamento de comida para as mulheres cujos homens voltavam da guerra e a não a fechar os salões de cabeleireiro, como havia sido proposto uma vez.

Ninguém era mais íntimo de Hitler do que Eva Braun, mesmo que ele fosse cuidados de não parecer muito íntimo dela em aparições públicas. Ele acreditava que sua missão era dedicar-se somente ao povo alemão e se ele pensasse que ele tinha uma relação íntima, talvez as pessoas perdessem a fé nele.

Dois dias após me falar sobre o duplo suicídio, ele finalmente recompensou Eva por sua lealdade ao torná-la sua esposa.

Era algo que ela sonhou por dez anos, mas que no final revelou-se um tema estéril e decepcionante. Mesmo assim, o rosto de Eva iluminou-se quando começamos a chamá-la de Frau Hitler. Quando ela acordou na manhã seguinte, foi o seu primeiro e último dia como esposa.

Hitler permaneceu na cama acordado e vestido por toda a noite. Ele proferiu um monólogo sobre o futuro no almoço, então ele e Eva se despediram.

Às 15h45m, obedeci suas ordens pela última vez. Extraordinariamente calmo e com voz serena – como se ele estivesse me enviando ao jardim para buscar algo – ele disse: “Linge, vou me matar agora. Você sabe o que fazer.” Eu fiz a saudação e, após dar dois ou três passos em minha direção, ele ergueu seu braço direito pela última vez em sua vida.

Girei meu calcanhar, fechei a porta e fui em direção da saída do bunker. No meio do estrondo dos projéteis soviéticos, um único tiro de pistola aconteceu. Sua vida havia terminado.

E a minha nunca mais seria a mesma.     

Nota:

[1] Obergruppenführer é uma patente primeiramente criada em 1932 para a SA,  a força paramilitar do Partido Nazista. Até o final de 1942 era a maior patente da SS, inferior apenas ao Reichsführer-SS (Heinrich Himmler).

http://www.dailymail.co.uk/news/article-1204388/I-Hitlers-valet-Memoirs-manservant-final-act-devotion-burn-masters-body.html

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terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

[SGM] Sangue, suor e gelo: A campanha dos brasileiros na Segunda Guerra

Márcio Sampaio de Castro


Enquanto o rigoroso inverno se aproximava dos Apeninos, que corta a Itália de norte a sul, o Alto Comando aliado estabelecia uma meta: a cidade de Bolonha deveria ser conquistada de qualquer jeito até o Natal. Para eles, o ano de 1944 havia sido bastante positivo no cenário europeu. No leste, os soviéticos avançavam rápido e já combatiam próximos à fronteira alemã. No oeste, ingleses e americanos haviam finalmente conseguido realizar o desembarque na costa francesa, abrindo uma terceira e decisiva frente de combate contra o Reich. Conquistar Bolonha significaria manter sob pressão intensa o inimigo na península italiana, ao sul do território nazista.

Por outro lado, a abertura da frente francesa havia desfalcado o 5º Exército norte-americano no front italiano, comandado pelo general Mark Clark, e a presença de uma divisão inteira como a FEB era bem-vista pelos americanos, uma vez que o avanço pelas montanhas italianas exigiria um grande sacrifício, com a perda de muitos homens. Em novembro, a divisão expedicionária brasileira estava praticamente completa, o que teoricamente a habilitava a ser empregada no esforço para romper a “Linha Gótica” alemã em direção a Bolonha.

Mas o abismo entre o treinamento recebido pelos brasileiros e a realidade da guerra também se fazia presente, como lembrou o veterano Newton Lascaléia, em depoimento ao historiador César Maximiano. “As únicas montanhas que eu tinha visto, de longe, no Brasil, foram o Pico do Jaraguá, em São Paulo, e o Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro. De repente, me vi lá dentro da cordilheira apenina no meio daquela vastidão de elevações enormes, enfrentando o começo de um inverno rigoroso. No nosso treinamento nunca se falou em montanha.”

Preparados ou não, os pracinhas foram escalados no final de novembro para atacar, ao lado dos norte-americanos, um conjunto de elevações que tinham como pontos principais o Monte Belvedere e o Monte Castelo. Aos brasileiros, cabia conquistar este último.

25 quilos nas costas

Para se ter uma ideia, em média, cada soldado carregava 25 quilos de equipamentos. Nos deslocamentos morro acima deveriam procurar abrigo atrás das rochas, uma vez que a vegetação havia sido devastada pelos intensos bombardeios. E, como se isso não bastasse, no caminho eles deveriam livrar-se das minas – que, dependendo do tamanho, poderiam arrancar um membro ou mesmo desintegrar um homem –, dos bombardeios e das temíveis “Lurdinhas”, as eficientes metralhadoras alemãs, capazes de cortar um inimigo ao meio com apenas uma rajada.

Ao término da subida pela encosta do morro, os que conseguiam se aproximar das fortificações, casamatas e porões guarnecidos pelos alemães eram recebidos por uma bem-montada linha de metralhadoras, que também recebeu um apelido dos soldados: o “corredor da morte”, criado para impedir qualquer ataque frontal. Do alto do morro os defensores podiam controlar qualquer movimentação inimiga, tornando impossível o fator surpresa.

Essas desvantagens obrigaram os aliados a usar o expediente da queima de óleo diesel para dificultar a visão que os alemães tinham de todos os acessos aos cumes das elevações ocupadas por eles. “Na região de Monte Castelo tínhamos 24 horas de noite. O tempo todo tudo escuro por causa da fumaça”, conta o jornalista Joel Silveira, correspondente dos Diários Associados na campanha brasileira.

Uniformes brasileiros durante a Segunda Guerra Mundial

Ataque frustrado

A ideia de tomar o Monte Castelo foi frustrada no primeiro ataque, em 24 de novembro, por uma falha na combinação entre brasileiros e norte-americanos. O apoio de tanques, manobrados por estes, e artilharia mostrou-se insuficiente e os homens da infantaria que tentavam subir a elevação logo perceberam que seriam uma presa fácil para a chuva de chumbo que os alemães despejaram com seus morteiros, canhões e metralhadoras. Aos atacantes cabia se defender não só dos tiros que vinham do próprio Castelo, mas também da barragem montada nos morros vizinhos, ainda que os americanos tivessem conquistado o Bevedere, localizado ao lado. Resultado: vitória alemã.

Cinco dias depois seria lançado um novo ataque, apenas com brasileiros. Foi a investida mais devastadora para a FEB. Foram empregados batalhões dos três regimentos, mas a expulsão dos norte-americanos do Monte Belvedere, seguida por um obstinado contra-ataque alemão, apanhou os pracinhas bem na subida. Transformados em alvos, contabilizariam ao final da batalha 195 baixas, entre mortos, feridos e desaparecidos. Muitos dos corpos só seriam resgatados meses depois.

Em meados de dezembro, as condições do inverno europeu já se faziam presentes na montanha que vinha se convertendo em um mito para os pracinhas. A cobertura aérea, tão necessária para apoiar uma investida morro acima, era inviável. O nevoeiro que impedia a decolagem dos caças-bombardeiros também dificultava o apoio da artilharia. Mesmo assim, o comando decidiu tentar mais uma vez. Entretanto, após a perda de mais 145 homens, a ordem de retirada foi emitida. O inverno, que tanto havia castigado os homens de Hitler nas planícies soviéticas, seria uma arma importante para imobilizar seus inimigos nas montanhas italianas.

No Natal de 1944, após as fracassadas tentativas de tomada do Monte Castelo, a FEB pôde vivenciar um pouco daquilo que fora a Primeira Guerra Mundial. Sem a possibilidade de contar com um apoio preciso da aviação, por causa das nevascas, que também atolavam os tanques e convertiam as estradas em lodaçais intransponíveis até para a infantaria, a divisão brasileira se viu confinada aos foxholes (tocas de raposas) cavados no solo pedregoso e que cumpriam o papel de trincheiras.

“Pé de trincheira”

As ações militares naquele período limitavam-se aos duelos entre as artilharias, que castigavam até o quartel-general da FEB, localizado na cidade de Porreta Terme, a 30 quilômetros da linha de frente, e as patrulhas. Nelas, grupos que variavam de cinco a 30 homens tinham a incumbência de estabelecer algum contato com o inimigo, monitorando suas posições e deslocamentos. Mas o grande adversário dos soldados naquele período era o frio, que podia chegar a 20 graus centígrados negativos. “O forte vento dos Apeninos trazia consigo a neve que se desprendia do solo, açoitando os rostos dos homens, a ponto de esfolar a pele e tamborilando os capacetes de aço como chuva de granizo sobre a capota de um carro. O frio era rigoroso a ponto de tornar insensíveis as mãos dos soldados após um curto tempo de vigilância num foxhole”, conta o ex-tenente José Gonçalves em suas memórias de guerra. A isso se somava um terror comum na frente européia naquele período: o chamado “pé de trincheira” – a gangrena nos pés dos soldados, causada por umidade no sapato, que tinha como conseqüência a amputação dos membros inferiores.

Com o degelo no início de fevereiro, o comando aliado retomou o antigo projeto de alcançar Bolonha e as ricas cidades do vale do rio Pó, como Milão e Turim, o mais rápido possível. Para isso, foi montada a operação Encore (Retomada), uma ação conjunta de todas as forças disponíveis na península italiana para asfixiar as unidades nazi-fascistas. A FEB tinha novamente sob sua incumbência tomar o traumático Monte Castelo. Nas três tentativas do ano anterior, os brasileiros haviam sofrido centenas de baixas, o que servira para abalar o moral da tropa. A quarta tentativa não poderia falhar de forma alguma. Segundo relatou o falecido jornalista Joel Silveira, que acompanhou os combates in loco, “o general Mascarenhas de Morais, comandante das forças brasileiras na Europa, resolveu desacatar as orientações do comando norte-americano e empregou todas as unidades que tinha a sua disposição para o ataque”. Tomar Castelo tornara-se uma questão de honra, e o que os pracinhas não haviam conseguido em três meses, concluíram em pouco mais de 12 horas no dia 21 de fevereiro. O fantasma fora, finalmente, exorcizado.

A vitória serviria não só para espantar fantasmas, mas também para empurrar a divisão brasileira para uma série de conquistas através das últimas elevações antes do rio Pó. Uma dessas batalhas, a de Montese, ficaria conhecida como a mais violenta travada pelos brasileiros na Itália.

A tomada de Montese

No dia 16 de abril, o jornalista Egydio Squeff, correspondente de guerra do jornal O Globo, enviaria o seguinte texto para a redação: “Escrevo de dentro de Montese destruída. Montese já não existe. Nenhuma casa ficou intacta e só agora podemos avaliar o efeito terrível causado pelos disparos de artilharia. Montese é uma cidade deserta, envolta em ruínas. Em suas casas destroçadas, as manchas de sangue assinalam a violência da batalha com que os alemães a defenderam”. Mais adiante, continuou: “Procurei em vão encontrar um habitante de Montese. Só deparei com portas destroçadas, leitos vazios, cômodos em desordem. Penso que, desde que começou a batalha pela sua posse, a população abandonou a cidade. Os brasileiros venceram os nazistas, entre os quais se achavam muitos prussianos, num combate verdadeiramente épico, depois de encontro de ruas, de casa em casa, onde ficaram mortos e feridos muitos combatentes nossos.”

Após a batalha de Montese, gradativamente, a FEB começou a descer os Apeninos. A missão agora era impedir que os alemães cruzassem o rio Pó e pudessem se reorganizar nos Alpes. Com lances de destreza e esperteza, que contaram até com a participação de um padre italiano como intermediário para negociar com o comando inimigo, as forças brasileiras conseguiriam finalmente cercar os alemães na região de Fornovo, no final do mês de abril. Num processo de rendição que duraria três dias, quase 15 mil alemães se entregariam à divisão expedicionária. A guerra acabava ali para os dois lados.


Os anjos do campo de batalha

Criada por decreto no ano de 1944, a Capelania Militar enviou para a Europa 30 sacerdotes católicos e dois pastores evangélicos, todos voluntários. O papel deles era oficiar missas e cultos na retaguarda, prestando assistência individual quando requisitados por um integrante da tropa. Eles foram importantes para consolar os pracinhas na dura realidade da guerra.

Outro ponto de apoio para os brasileiros foi o Serviço de Saúde. Ao todo, o serviço recebeu 186 profissionais de saúde, dos quais 67 eram enfermeiras. A exemplo de todos os envolvidos na frente de combate, as enfermeiras, que tinham entre 18 e 36 anos, enfrentaram as dificuldades dos alojamentos de campanha, o frio e, principalmente, o contato diário com o sofrimento de jovens soldados, que em muitos casos acabaram por perder a visão ou os membros. A presença feminina foi um fator importante para que os feridos se sentissem reconfortados num momento de extrema privação e dor.

Conquista heroica

A ordem para avançar em direção a Montaurigula veio por telefone, no dia 12 de abril de 1945. Se não encontrasse resistência, o 3º Batalhão do 11º Regimento de Infantaria da FEB deveria seguir dali para as colinas de Montese, pequena cidade ocupada pelas tropas do exército alemão no norte da Itália. Fortemente armada, a patrulha da FEB formada por 21 homens partiu às 9h e, depois de passar sem resistência por Montaurigula, seguiu para Montese. No caminho, depararam com uma colina alongada, de onde retiraram 82 minas de um campo, e logo encontraram as primeiras posições de defesa. Depois de intensos combates, foram vencendo a resistência alemã e, na noite de 14 de abril, já haviam dominado as encostas a sudoeste da cidade com a ajuda de outros dois pelotões. A capacidade defensiva da infantaria inimiga também estava quebrada, mas a luta entrou madrugada adentro. Apesar da grande quantidade de alemães em Montese, a artilharia das forças da Wermacht descarregou naquela noite cerca de 2 800 tiros.

Na manhã do dia 15, ainda sob forte fogo inimigo, os brasileiros finalizaram a tomada da cidade. Os homens da FEB romperam as linhas alemãs nos últimos contrafortes dos Apeninos, mas a tomada de Montese lhes custou muito caro. Foi a batalha mais sangrenta para nossas tropas desde a Guerra do Paraguai, com um saldo de 426 baixas, entre mortos, feridos e desaparecidos. Duas semanas depois, a guerra na Itália chegaria ao fim. Em homenagem aos brasileiros, Montese construiu o Museu Militar da Força Expedicionária Brasileira, no interior de um castelo do século 12.