1979. O Irã está em ebulição, com a chegada ao poder do aiatolá
Khomeini. Como o antigo xá ganhou asilo político nos Estados Unidos, que haviam
apoiado seu governo de opressão ao povo iraniano, há nas ruas de Teerã diversos
protestos contra os americanos. Um deles acontece em frente à embaixada do
país, que acaba invadida. Seis diplomatas americanos conseguem escapar do local
pouco antes da invasão, indo se refugiar na casa do embaixador canadense. Lá
eles vivem durante meses, sob sigilo absoluto, enquanto a CIA busca um meio de
retirá-los do país em segurança. A melhor opção é apresentada por Tony Mendez
(Ben Affleck), um especialista em exfiltrações, que sugere que uma produção de
Hollywood seja utilizada como fachada para a operação. Aproveitando o sucesso
de filmes como "Guerra nas Estrelas" e "A Batalha do Planeta dos
Macacos", a ideia é criar um filme falso, a ficção científica Argo, que
usaria as paisagens desérticas do Irã como locação. O projeto segue adiante com
a ajuda do produtor Lester Siegel (Alan Arkin) e do maquiador John Chambers
(John Goodman), que conhecem Ben como funciona Hollywood.
“Em
uma época quando boatos de guerra, intimidação e agressão são trocados entre os
políticos,” disse ele, o Irã finalmente foi agraciado por “sua cultura
gloriosa, uma cultura rica e antiga que esteve escondida sob a poeira densa da
política.” Farhadi dedicou o Oscar “às pessoas de meu país, um povo que
respeita todas as culturas e civilizações e despreza a hostilidade e o
ressentimento.”
Tal
graça e eloquência não estiveram certamente presentes neste domingo, quando Ben
Affleck, ladeado pelos seus co-produtores George Clooney e Grant Heslov,
durante a entrega do Oscar de Melhor Filme, por sua homenagem altamente
aclamada e decorada à CIA e à inocência americana, “Argo.”
Nos
últimos doze meses, raramente passou uma semana sem que se proclamassem novas
previsões de uma iminente arma nuclear iraniana e as ameaças constantes de um
ataque militar americano ou israelense contra o Irã. Vem outubro de 2012, com o
desafiador “Argo”, uma “estória real” descontextualizada, fictícia de proporções
épicas, sujeitando as plateias a duas horas de vitimização americana e bárbaros
barbudos, culminando em rolhas de champanhe estourando e bandeiras tremulando
celebrando nosso heroísmo e triunfo e a frustração e derrota deles. Andrew
O´Hehir, da revista Salon, corretamente descreveu o filme como “uma fábula
propagandística”, explicando como muitos outros fizeram que essencialmente
nenhum dos momentos marcantes do filme jamais ocorreu. O´Hehir sumariza desta
forma:
“Os
americanos nunca resistiram à ideia de ter uma equipe de filmagem, que é uma
grande fonte de agitação no filme. (De fato, os próprios “convidados”
escolheram a estória, de três opções oferecidas pela CIA.) Os americanos não foram quase linchados por uma multidão de
iranianos enlouquecidos no Grande Bazar de Teerã, porque eles não estavam lá.
Não houve um cancelamento de último minuto, e então uma nova aprovação, dos bilhetes
de passagem do grupo pela administração Carter. (A esposa do embaixador
canadense Ken Taylor foi pessoalmente ao aeroporto e comprou os bilhetes de
forma adiantada, para três voos longos.) O grupo não foi submetido a
interrogação no aeroporto nem foram detidos no portão de embarque enquanto um
membro da Guarda Revolucionária do Irã ligava para seu falso escritório em
Burbank. Não houve uma fuga de último segundo no Aeroporto de Mehrabad, com
militantes islâmicos barbudos atirando com seus Kalashnikovs contra os pneus de
um avião comercial suíço.”
Um
dos diplomatas presentes, Mark Lijek, notou que “a estória do filme falso da
CIA nunca foi testado e, em certo sentido, era irrelevante para a fuga.” A
partida dos seis americanos de Teerã foi, na verdade, comum e monótona. “Se
fosse perguntado, diríamos que teríamos deixado Teerã quando fosse mais seguro,”
relembrou Lijek, “mas ninguém jamais perguntou!... A verdade é que os
funcionários da imigração raramente olharam para nós e seguimos o caminho burocrático
normal. Pegamos o voo para Zurique e então fomos levados para a residência do
embaixador em Berna. Foi desta forma.”
Além
disso, Jimmy Carter reconheceu que “90% das contribuições para as ideias e
realização do plano foram canadenses, enquanto que o filme dá crédito quase
total à CIA... o personagem de Ben Affleck no filme esteve em Teerã somente um
dia e meio e o herói verdadeiro, em minha opinião, foi Ken Taylor, que era o
embaixador canadense que orquestrou o processo inteiro.”
O
próprio Taylor recentemente lembrou que “Argo” fornece uma representação míope
tanto dos iranianos quanto de sua revolução, ignorando seu “lado mais hospitaleiro
e uma intenção de que eles estavam procurando por um certo grau de justiça e
esperança e que tudo não foi apenas demonstração de violência gratuita. A coisa
mais estranha é que o roteirista em Hollywood não tinha ideia do que ele estava
falando.”
O´Hehir
trabalha de forma perfeita com o verdadeiro crime do filme, sua exploração
deliberada de “sua base histórica e seu modo de realismo detalhado para criar
algo que é inteiramente fantasioso.” Não se trata apenas de uma coleção banal de
cenas de ação conhecidas e diálogo expositivo,” mas “é também um filme de
propaganda em seu sentido mais real, um que afirma ser inocente de toda
ideologia.” Tal avaliação é confirmada pelos próprios comentários de Ben Affleck
sobre o filme. Ao descrever “Argo” para Bill O´Reilly, Affleck jactou-se, “Você
sabe, era uma grande estória. Resumindo, é um thriller. É na verdade
uma comédia com a sátira de Hollywood. É um filme complicado sobre a CIA, um
filme político. E tudo é verdade.” Ele disse à Rolling Stone que quando concebeu sua versão como diretor, ele
sabia que “não tinha que manter absolutamente a integridade central e verdade
da estória.”
“Não
existe problema em embelezar, está tudo Ben em comprimir, desde que você não
mude fundamentalmente a natureza da estória e do que aconteceu,” lembrou
Affleck, indo mesmo longe ao dizer aos repórteres na estreia de Argo no
Festival de Filme da BFI em Londres, “este filme é a respeito desta estória que
aconteceu, e é verdade, e sofri ao contextualizá-lo e tentei ser imparcial de
modo a ver os fatos de forma fria e realista.”
Em
uma entrevista para o The Huffington Post,
Affleck foi mais longe dizendo “Tentei fazer um filme que é absolutamente
fatual. E esta é outra razão por que tentei ser tão verdadeiro quanto possível –
porque não queria ser usado por qualquer um dos lados. Não queria ser politizado
internacionalmente e domesticamente de uma maneira partisan. Queria apenas contar uma estória sobre os fatos como os
compreendemos.”
Para
Affleck, estes fatos aparentemente não incluem compreender por que a Embaixada Americana em Teerã foi invadida e ocupada em 4
de novembro de 1979. “Não havia harmonia nem razão para esta ação,” insistiu
Affleck, afirmando que o assalto “não era sobre nós,” isto é, o governo
americano (apesar do fato de seu próprio filme ser introduzido por uma revisão
transitória – apesar de frequentemente inexata – sobre a cumplicidade americana
com a ditadura do Xá.)
Errado,
Ben. Uma razão foi o medo de outro golpe de estado orquestrado pela CIA, como
aquele perpetrado em 1953 a partir da mesma embaixada. Outra razão foi a
admissão do Xá deposto nos EUA para tratamento médico e asilo ao invés de sua
extradição ao Irã para enfrentar a acusação e julgamento por seus 25 anos de
crimes contra o povo iraniano, financiados e apoiados pelo governo americano.
Podemos não concordar com as razões, é claro, mas elas certamente existem.
Assim
como George H. W. Bush uma vez disse após um navio de guerra da Marinha
americana explodir um avião de passageiros no céu sobre o Golfo Pérsico,
matando seus 290 civis iranianos, “Jamais me desculparei pelos EUA. Jamais. Não
me importo o que os fatos sejam.” Affleck parece estar inclinado a concordar.
Se
nada mais, “Argo” é um exercício no excepcionalismo americano – talvez a mais
perigosa ficção que permeia nossa sociedade inteira e senso de identidade. (N.
do T.: O “excepcionalismo Americano” é uma ideia que defende os EUA como o “Império
da Liberdade” e que presume que os valores, o sistema político e a história
americanas são únicos e merecedores de admiração universal. Eles também
implicam que os Estados Unidos está destinado e designado a ter um papel
distinto e positivo no cenário mundial.) Ele reinventa a história no sentido de
criar um conto de triunfo a partir de uma derrota não aceita. A crise dos
reféns, que durou 444 dias e destruiu uma presidência americana, foi um
fracasso e embaraço para os americanos. O governo e mídia dos EUA passaram as
últimas três décadas procurando incansavelmente uma vingança contra o Irã pelo
que aconteceu.
“Argo”
representa os iranianos revolucionários como vítimas azaradas da astúcia e
logro americanos. Americanos são caçados, torturados e, no final, demonstram
coragem e conseguem a liberdade. Os iranianos são maníacos, ameaçadores e, no
final, tornam-se infantis e são enganados. Os fundamentalistas fanáticos falham
enquanto a América vence. EUA 1 x 0 Irã. Além disso, “Argo” esconde a verdade
inconveniente que, enquanto aqueles seis diplomatas estavam embarcando para a
Suíça em 28 de janeiro de 1980, seus 52 compatriotas tiveram que esperar um ano
inteiro antes de voltar para casa, não como resultado de uma tentativa
audaciosa de resgate, mas após um acordo diplomático ter sido alcançado.
Refletir
sobre os episódios mais problemáticos da história americana é uma tradição
dinâmica periódica. Há uma razão por que os melhores filmes sobre o Vietnã
serem recheados de dor, ódio, angústia e crimes de guerra. Em contraste, “Argo”
é uma catarse pornográfica americana; pura insolência hollywoodiana. É
propaganda pró-americana desprovida de introspecção, pathos ou humildade e destina-se
a aliviar nossos sentimentos feridos. Em “Argo”, nenhuma lição é aprendida
ao revisitar as consequências do apoio americano da monarquia Pahlavi ou da
criação e treinamento da SAVAK, a brutal polícia secreta do Xá.
Em
11 de junho de 1979, meses antes da crise dos reféns começar, o New York Times
publicou um artigo pelo historiador A. J. Langguth que fez revelações de um
antigo funcionário da inteligência americana lembrando a relação íntima da CIA
com a SAVAK. A agência enviou “um membro para ensinar métodos de interrogação
para a SAVAK” incluindo “instruções sobre tortura, cujas técnicas foram
copiadas dos nazistas.” Langguth lutou contra a imprensa, tentando entender por
que isto não havia sido amplamente divulgado pela mídia. Ele chegou à seguinte
conclusão:
“Nós
– e quero dizer nós como americanos – não acreditamos. Podemos ler as
acusações, mesmo examinar as evidências e considerá-las irrefutáveis. Mas, em
nossos corações, não acreditamos que os americanos tenham difundido o uso da
tortura em outros lugares.”
Podemos
acreditar que funcionários públicos com reputação de brilhantismo podem ser
arrogantes, cegos ou estúpidos. Qualquer coisa menos mau. E quando provas
acumulativas tornam-se evidentes que representantes da CIA ou da Agência para
Desenvolvimento Internacional ensinaram de fato práticas de tortura, nós nos
desculpamos vilificando os indivíduos.
Analogamente,
numa época quando a CIA está bancando um programa de execução por drones ilegal, imoral e não-regulado, os
sequestradores e torturadores da CIA da administração anterior são protegidos
de processo judicial pela atual administração, e documentos do departamento de
Estado vazados revelam ordens para diplomatas americanos espionarem
funcionários das Nações Unidas, é surreal que tal homenagem seja feita à mesma
organização pelos tais liberais da elite de Hollywood.
Ao
ganhar seu Golden Globe de Melhor Diretor mês passado, Ben Affleck servilmente
agradeceu ao “serviço clandestino assim como o serviço estrangeiro que está
fazendo sacrifícios em nome do povo americano diariamente (e) nossas tropas
servindo no estrangeiro, quero agradecê-los muito,” uma afirmação repetida
quase identicamente pelo co-produtor Grant Heslov quando “Argo” ganhou mais
tarde o prêmio de Melhor Drama.
Isto
não é surpresa, considerando que Affleck havia previamente descrito “Argo” como
um tributo “às pessoas extraordinárias e honradas na CIA” durante uma entrevista
ao Fox News.
A
relação entre Hollywood e as forças militares e a inteligência do governo
americano têm sido longamente aconchegantes. “Quando a CIA ou o Pentágono
dizem, ‘Te ajudaremos, se você jogar conosco,’ está favorecendo um tipo de
discurso em detrimento dos outros. Torna-se propaganda,” disse David Robb,
autor de “Operação Hollywood: Como o Pentágono molda e censura os Filmes”, ao
Los Angeles Times. “O perigo para os cineastas é que seu produto –
entretenimento e informação – acaba se tornando publicidade governamental.”
Premiar
“Argo” como Melhor Filme no Oscar foi como a premiação de Obama com o Nobel da
Paz: um prêmio imerecido a um destinatário duvidoso com base em uma ficção
transparente; um prêmio pelo que nunca foi e nunca seria e uma decisão
deliberadamente ingênua e grotesca que desonra qualquer relevância e prestígio
que os procedimentos ainda poderiam ter.
Assim,
quando “Argo” recebeu a cobiçada estatueta dourada, tornou-se claro que ainda
estamos cegos pela densa poeira da política e nosso mantra americano de
hostilidade e ressentimento continuará a dirigir nossas decisões,
conduzindo-nos cada vez mais próximo do abismo.
http://www.wideasleepinamerica.com/2013/02/oscar-prints-the-legend-argo.html
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