domingo, 10 de março de 2013

O Oscar cria a Lenda: O Prêmio de Argo e a Falha da Verdade

Nima Shirazi, 23/02/2013

 
Sinopse e detalhes

1979. O Irã está em ebulição, com a chegada ao poder do aiatolá Khomeini. Como o antigo xá ganhou asilo político nos Estados Unidos, que haviam apoiado seu governo de opressão ao povo iraniano, há nas ruas de Teerã diversos protestos contra os americanos. Um deles acontece em frente à embaixada do país, que acaba invadida. Seis diplomatas americanos conseguem escapar do local pouco antes da invasão, indo se refugiar na casa do embaixador canadense. Lá eles vivem durante meses, sob sigilo absoluto, enquanto a CIA busca um meio de retirá-los do país em segurança. A melhor opção é apresentada por Tony Mendez (Ben Affleck), um especialista em exfiltrações, que sugere que uma produção de Hollywood seja utilizada como fachada para a operação. Aproveitando o sucesso de filmes como "Guerra nas Estrelas" e "A Batalha do Planeta dos Macacos", a ideia é criar um filme falso, a ficção científica Argo, que usaria as paisagens desérticas do Irã como locação. O projeto segue adiante com a ajuda do produtor Lester Siegel (Alan Arkin) e do maquiador John Chambers (John Goodman), que conhecem Ben como funciona Hollywood.


 

 
Um ano atrás, após seu belo drama iraniano, “Uma Separação”, ganhar o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o diretor/escritor Asghar Farhadi fez o melhor discurso de agradecimento da noite.

“Em uma época quando boatos de guerra, intimidação e agressão são trocados entre os políticos,” disse ele, o Irã finalmente foi agraciado por “sua cultura gloriosa, uma cultura rica e antiga que esteve escondida sob a poeira densa da política.” Farhadi dedicou o Oscar “às pessoas de meu país, um povo que respeita todas as culturas e civilizações e despreza a hostilidade e o ressentimento.”

Tal graça e eloquência não estiveram certamente presentes neste domingo, quando Ben Affleck, ladeado pelos seus co-produtores George Clooney e Grant Heslov, durante a entrega do Oscar de Melhor Filme, por sua homenagem altamente aclamada e decorada à CIA e à inocência americana, “Argo.”

Nos últimos doze meses, raramente passou uma semana sem que se proclamassem novas previsões de uma iminente arma nuclear iraniana e as ameaças constantes de um ataque militar americano ou israelense contra o Irã. Vem outubro de 2012, com o desafiador “Argo”, uma “estória real” descontextualizada, fictícia de proporções épicas, sujeitando as plateias a duas horas de vitimização americana e bárbaros barbudos, culminando em rolhas de champanhe estourando e bandeiras tremulando celebrando nosso heroísmo e triunfo e a frustração e derrota deles. Andrew O´Hehir, da revista Salon, corretamente descreveu o filme como “uma fábula propagandística”, explicando como muitos outros fizeram que essencialmente nenhum dos momentos marcantes do filme jamais ocorreu. O´Hehir sumariza desta forma:

“Os americanos nunca resistiram à ideia de ter uma equipe de filmagem, que é uma grande fonte de agitação no filme. (De fato, os próprios “convidados” escolheram a estória, de três opções oferecidas pela CIA.) Os americanos  não foram quase linchados por uma multidão de iranianos enlouquecidos no Grande Bazar de Teerã, porque eles não estavam lá. Não houve um cancelamento de último minuto, e então uma nova aprovação, dos bilhetes de passagem do grupo pela administração Carter. (A esposa do embaixador canadense Ken Taylor foi pessoalmente ao aeroporto e comprou os bilhetes de forma adiantada, para três voos longos.) O grupo não foi submetido a interrogação no aeroporto nem foram detidos no portão de embarque enquanto um membro da Guarda Revolucionária do Irã ligava para seu falso escritório em Burbank. Não houve uma fuga de último segundo no Aeroporto de Mehrabad, com militantes islâmicos barbudos atirando com seus Kalashnikovs contra os pneus de um avião comercial suíço.”

Um dos diplomatas presentes, Mark Lijek, notou que “a estória do filme falso da CIA nunca foi testado e, em certo sentido, era irrelevante para a fuga.” A partida dos seis americanos de Teerã foi, na verdade, comum e monótona. “Se fosse perguntado, diríamos que teríamos deixado Teerã quando fosse mais seguro,” relembrou Lijek, “mas ninguém jamais perguntou!... A verdade é que os funcionários da imigração raramente olharam para nós e seguimos o caminho burocrático normal. Pegamos o voo para Zurique e então fomos levados para a residência do embaixador em Berna. Foi desta forma.”

Além disso, Jimmy Carter reconheceu que “90% das contribuições para as ideias e realização do plano foram canadenses, enquanto que o filme dá crédito quase total à CIA... o personagem de Ben Affleck no filme esteve em Teerã somente um dia e meio e o herói verdadeiro, em minha opinião, foi Ken Taylor, que era o embaixador canadense que orquestrou o processo inteiro.”

O próprio Taylor recentemente lembrou que “Argo” fornece uma representação míope tanto dos iranianos quanto de sua revolução, ignorando seu “lado mais hospitaleiro e uma intenção de que eles estavam procurando por um certo grau de justiça e esperança e que tudo não foi apenas demonstração de violência gratuita. A coisa mais estranha é que o roteirista em Hollywood não tinha ideia do que ele estava falando.”

O´Hehir trabalha de forma perfeita com o verdadeiro crime do filme, sua exploração deliberada de “sua base histórica e seu modo de realismo detalhado para criar algo que é inteiramente fantasioso.” Não se trata apenas de uma coleção banal de cenas de ação conhecidas e diálogo expositivo,” mas “é também um filme de propaganda em seu sentido mais real, um que afirma ser inocente de toda ideologia.” Tal avaliação é confirmada pelos próprios comentários de Ben Affleck sobre o filme. Ao descrever “Argo” para Bill O´Reilly, Affleck jactou-se, “Você sabe, era uma grande estória. Resumindo, é um thriller. É na verdade uma comédia com a sátira de Hollywood. É um filme complicado sobre a CIA, um filme político. E tudo é verdade.” Ele disse à Rolling Stone que quando concebeu sua versão como diretor, ele sabia que “não tinha que manter absolutamente a integridade central e verdade da estória.”

“Não existe problema em embelezar, está tudo Ben em comprimir, desde que você não mude fundamentalmente a natureza da estória e do que aconteceu,” lembrou Affleck, indo mesmo longe ao dizer aos repórteres na estreia de Argo no Festival de Filme da BFI em Londres, “este filme é a respeito desta estória que aconteceu, e é verdade, e sofri ao contextualizá-lo e tentei ser imparcial de modo a ver os fatos de forma fria e realista.”

Em uma entrevista para o The Huffington Post, Affleck foi mais longe dizendo “Tentei fazer um filme que é absolutamente fatual. E esta é outra razão por que tentei ser tão verdadeiro quanto possível – porque não queria ser usado por qualquer um dos lados. Não queria ser politizado internacionalmente e domesticamente de uma maneira partisan. Queria apenas contar uma estória sobre os fatos como os compreendemos.”          

Para Affleck, estes fatos aparentemente não incluem compreender por que a Embaixada Americana em Teerã foi invadida e ocupada em 4 de novembro de 1979. “Não havia harmonia nem razão para esta ação,” insistiu Affleck, afirmando que o assalto “não era sobre nós,” isto é, o governo americano (apesar do fato de seu próprio filme ser introduzido por uma revisão transitória – apesar de frequentemente inexata – sobre a cumplicidade americana com a ditadura do Xá.)

Errado, Ben. Uma razão foi o medo de outro golpe de estado orquestrado pela CIA, como aquele perpetrado em 1953 a partir da mesma embaixada. Outra razão foi a admissão do Xá deposto nos EUA para tratamento médico e asilo ao invés de sua extradição ao Irã para enfrentar a acusação e julgamento por seus 25 anos de crimes contra o povo iraniano, financiados e apoiados pelo governo americano. Podemos não concordar com as razões, é claro, mas elas certamente existem.

Assim como George H. W. Bush uma vez disse após um navio de guerra da Marinha americana explodir um avião de passageiros no céu sobre o Golfo Pérsico, matando seus 290 civis iranianos, “Jamais me desculparei pelos EUA. Jamais. Não me importo o que os fatos sejam.” Affleck parece estar inclinado a concordar.

Se nada mais, “Argo” é um exercício no excepcionalismo americano – talvez a mais perigosa ficção que permeia nossa sociedade inteira e senso de identidade. (N. do T.: O “excepcionalismo Americano” é uma ideia que defende os EUA como o “Império da Liberdade” e que presume que os valores, o sistema político e a história americanas são únicos e merecedores de admiração universal. Eles também implicam que os Estados Unidos está destinado e designado a ter um papel distinto e positivo no cenário mundial.) Ele reinventa a história no sentido de criar um conto de triunfo a partir de uma derrota não aceita. A crise dos reféns, que durou 444 dias e destruiu uma presidência americana, foi um fracasso e embaraço para os americanos. O governo e mídia dos EUA passaram as últimas três décadas procurando incansavelmente uma vingança contra o Irã pelo que aconteceu.

“Argo” representa os iranianos revolucionários como vítimas azaradas da astúcia e logro americanos. Americanos são caçados, torturados e, no final, demonstram coragem e conseguem a liberdade. Os iranianos são maníacos, ameaçadores e, no final, tornam-se infantis e são enganados. Os fundamentalistas fanáticos falham enquanto a América vence. EUA 1 x 0 Irã. Além disso, “Argo” esconde a verdade inconveniente que, enquanto aqueles seis diplomatas estavam embarcando para a Suíça em 28 de janeiro de 1980, seus 52 compatriotas tiveram que esperar um ano inteiro antes de voltar para casa, não como resultado de uma tentativa audaciosa de resgate, mas após um acordo diplomático ter sido alcançado.

Refletir sobre os episódios mais problemáticos da história americana é uma tradição dinâmica periódica. Há uma razão por que os melhores filmes sobre o Vietnã serem recheados de dor, ódio, angústia e crimes de guerra. Em contraste, “Argo” é uma catarse pornográfica americana; pura insolência hollywoodiana. É propaganda pró-americana desprovida de introspecção, pathos ou humildade e destina-se a aliviar nossos sentimentos feridos. Em “Argo”, nenhuma lição é aprendida ao revisitar as consequências do apoio americano da monarquia Pahlavi ou da criação e treinamento da SAVAK, a brutal polícia secreta do Xá.

Em 11 de junho de 1979, meses antes da crise dos reféns começar, o New York Times publicou um artigo pelo historiador A. J. Langguth que fez revelações de um antigo funcionário da inteligência americana lembrando a relação íntima da CIA com a SAVAK. A agência enviou “um membro para ensinar métodos de interrogação para a SAVAK” incluindo “instruções sobre tortura, cujas técnicas foram copiadas dos nazistas.” Langguth lutou contra a imprensa, tentando entender por que isto não havia sido amplamente divulgado pela mídia. Ele chegou à seguinte conclusão:

“Nós – e quero dizer nós como americanos – não acreditamos. Podemos ler as acusações, mesmo examinar as evidências e considerá-las irrefutáveis. Mas, em nossos corações, não acreditamos que os americanos tenham difundido o uso da tortura em outros lugares.”

Podemos acreditar que funcionários públicos com reputação de brilhantismo podem ser arrogantes, cegos ou estúpidos. Qualquer coisa menos mau. E quando provas acumulativas tornam-se evidentes que representantes da CIA ou da Agência para Desenvolvimento Internacional ensinaram de fato práticas de tortura, nós nos desculpamos vilificando os indivíduos.

Analogamente, numa época quando a CIA está bancando um programa de execução por drones ilegal, imoral e não-regulado, os sequestradores e torturadores da CIA da administração anterior são protegidos de processo judicial pela atual administração, e documentos do departamento de Estado vazados revelam ordens para diplomatas americanos espionarem funcionários das Nações Unidas, é surreal que tal homenagem seja feita à mesma organização pelos tais liberais da elite de Hollywood.

Ao ganhar seu Golden Globe de Melhor Diretor mês passado, Ben Affleck servilmente agradeceu ao “serviço clandestino assim como o serviço estrangeiro que está fazendo sacrifícios em nome do povo americano diariamente (e) nossas tropas servindo no estrangeiro, quero agradecê-los muito,” uma afirmação repetida quase identicamente pelo co-produtor Grant Heslov quando “Argo” ganhou mais tarde o prêmio de Melhor Drama.    

Isto não é surpresa, considerando que Affleck havia previamente descrito “Argo” como um tributo “às pessoas extraordinárias e honradas na CIA” durante uma entrevista ao Fox News.

A relação entre Hollywood e as forças militares e a inteligência do governo americano têm sido longamente aconchegantes. “Quando a CIA ou o Pentágono dizem, ‘Te ajudaremos, se você jogar conosco,’ está favorecendo um tipo de discurso em detrimento dos outros. Torna-se propaganda,” disse David Robb, autor de “Operação Hollywood: Como o Pentágono molda e censura os Filmes”, ao Los Angeles Times. “O perigo para os cineastas é que seu produto – entretenimento e informação – acaba se tornando publicidade governamental.”

Premiar “Argo” como Melhor Filme no Oscar foi como a premiação de Obama com o Nobel da Paz: um prêmio imerecido a um destinatário duvidoso com base em uma ficção transparente; um prêmio pelo que nunca foi e nunca seria e uma decisão deliberadamente ingênua e grotesca que desonra qualquer relevância e prestígio que os procedimentos ainda poderiam ter.

Assim, quando “Argo” recebeu a cobiçada estatueta dourada, tornou-se claro que ainda estamos cegos pela densa poeira da política e nosso mantra americano de hostilidade e ressentimento continuará a dirigir nossas decisões, conduzindo-nos cada vez mais próximo do abismo.

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