sábado, 8 de junho de 2013

Saímos do Iraque, mas os iraquianos não têm essa opção

John Pilger

The Guardian, 26/05/13

 
A areia percorre as longas estradas, as quais são os dedos do deserto. Ela entra em seus olhos e nariz e garganta; ela invade os mercados e os parquinhos das escolas, cobrindo as crianças que jogam futebol; e ela carrega, segundo o Dr. Jawad Al-Ali, “as sementes de nossa morte.” Especialista internacional respeitado em câncer no hospital universitário Sadr em Basra, o Dr. Ali me disse que em 1999, e hoje seu alerta é irrefutável. “Antes da Guerra do Golfo,” ele disse, “tínhamos dois ou três pacientes com câncer por mês. Agora, temos 30 a 35 morrendo todo mês. Nossos estudos indicam que 40 a 48% da população nesta área contrairão câncer: no tempo de cinco anos e, em seguida, muito tempo depois. É quase metade da população. A maioria de minha própria família está com ele, e não temos histórico familiar da doença. É como Chernobyl aqui; os efeitos genéticos são novos para nós; os cogumelos crescem enormes; mesmo as uvas em meu jardim sofreram mutação e não podem ser consumidas.”

Junto no corredor, a Dra. Ginan Ghalib Hassen, uma pediatra, manteve um álbum das crianças que ela estava tentando salvar. Muitas tinham neuroblastoma (n. do t.: tumor congênito que ataca recém-nascidos). “Antes da guerra, vimos apenas um caso deste tumor incomum em dois anos,” ela disse. “Agora, temos muitos casos, a maioria sem histórico familiar. Estudei o que aconteceu em Hiroshima. O aumento repentino de tais más formações congênitas é o mesmo.”

Entre os médicos que entrevistei, havia pouca dúvida de que os projéteis de urânio empobrecido usado pelos americanos e britânicos na Guerra do Golfo foram a causa. Um médico das forças armadas americanas designado para limpar o campo de batalho da guerra do Golfo ao longo da fronteira do Kuwait disse: “cada projétil disparado por uma aeronave de ataque A-10 Warthog carregava cerca de 4,5 kg de urânio sólido. Cerca de 300 toneladas de urânio empobrecido foram usadas. Isto é uma forma de guerra nuclear.”

Apesar da ligação com o câncer é sempre difícil de provar de forma absoluta, os médicos iraquianos argumentam que “a epidemia fala por si só.” O oncologista britânico Karol Sikora, chefe do programa de câncer da Organização Mundial da Saúde nos anos 1990, escreveu no Jornal Médico britânico: “Equipamento de radioterapia solicitado, drogas quimioterápicas e analgésicos são constantemente bloqueados pelos consultores americanos e britânicos (ao comitê de sansões iraquianas).” Ele me disse, “nós fomos avisados especificamente (pela OMS) a não falar sobre o que estava acontecendo no Iraque. A OMS não é uma organização que gosta de se envolver em política.”

Recentemente, Hans von Sponeck, antigo secretário geral da Nações Unidas e funcionário sênior da ONU Humanitária no Iraque, escreveu-me: “O governo americano conseguiu prevenir que a OMS investigasse as áreas no sul do Iraque, onde o urânio empobrecido foi usado e causou problemas sérios de saúde e ambientais.” Um relatório da OMS, o resultado de um estudo de referência conduzido pelo ministério da saúde iraquiano, foi “postergado”. Cobrindo 10.800 lares, ele contém “evidência avassaladora”, diz um funcionário do ministério e, de acordo com um de seus pesquisadores, permanece “ultra secreto”. O relatório diz que os defeitos de nascimento cresceram ao ponto de uma “crise” dentro da sociedade iraquiana onde o urânio empobrecido e outros metais pesados tóxicos foram usados pelos EUA e Grã-Bretanha. Quatorze anos após fazer o alerta, o Dr. Jawad Al-Ali avalia cânceres múltiplos em famílias inteiras.

O Iraque já não é mais notícia. Semana passada, a morte de 57 iraquianos em apenas um dia não foi nem comparado ao assassinato de um soldado britânico em Londres. Mesmo assim, as duas atrocidades estão conectadas. Seu simbolismo poderia ser um pródigo novo filme para “O Grande Gatsby” de F. Scott Fitzgerald. Os dois personagens principais, como escreveu Fitzgerald, “destruíram as coisas e as pessoas e voltaram-se para seu dinheiro e sua vasta irresponsabilidade... e deixaram que outras pessoas arrumassem a bagunça.”

A “bagunça” deixada por George Bush e Tony Blair no Iraque é uma guerra sectária, as bombas de 7/7 (n. do t.: os atentados em Londres de 07/07/2005) e agora um homem carregando uma faca ensanguentada em Woolwich. Bush voltou-se para o seu “museu e biblioteca presidencial” Mickey Mouse e Tony Blair em suas palestras ao redor do mundo e dinheiro.

Sua “bagunça” é um crime de proporções épicas, escreveu Von Sponeck, referindo-se à estimativa do Ministério de Assuntos Sociais do Iraque de 4,5 milhões de crianças que perderam um ou ambos os pais. “Isto significa que cerca de 14% da população iraquiana está órfã,” ele escreveu. “Cerca de um milhão de famílias são comandadas por mulheres, a maioria das quais são viúvas.” A violência doméstica e pedofilia são assuntos urgentes na Grã-Bretanha; no Iraque, a catástrofe iniciada pela Grã-Bretanha trouxe violência e abuso a milhões de lares.

Em seu livro “Despachos do Lado Negro”, Gareth Peirce, a grande advogada dos direitos humanos na Grã-Bretanha, aplica a força da lei contra Blair, seu propagandista Alastair Campbell e seu Gabinete conivente. Para Blair, ela escreveu, “seres humanos que supostamente mantenham suas visões (islâmicas) devem ser mutiladas por qualquer meio possível, e permanentemente... na linguagem de Blair, um ‘vírus’ a ser ‘eliminado’ e exigindo ‘uma miríade de intervenções (sic) profundamente nos assuntos de outras nações.” E mesmo assim, diz Peirce, “a troca de e-mails, comunicados intergovernamentais, não revelam dissidência.” Para o secretário do exterior Jack Straw, enviar cidadãos britânicos inocentes a Guantanamo era “o melhor meio de cumprir nosso objetivo contra-terrorista.”

Estes crimes, sua iniquidade em pé de igualdade com Woolwich, aguarda um processo judicial. Mas quem entrará com ele? No teatro kabuki (n. do t.: teatro japonês com os atores muito maquiados) da política de Westminster, a violência distante de “nossos valores” não tem interesse. O resto de nós virou as costas?           

http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2013/may/26/iraqis-cant-turn-backs-on-deadly-legacy

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