Como
tema de um perfil de poder, Hitler é, tanto quanto seja possível conceber, um
caso notável. Em seus primeiros trinta anos de vida foi um João-ninguém. Nos
vinte e seis anos restantes de sua existência, deixou uma marca indelével na
história, como ditador da Alemanha e instigador de uma guerra genocida. Como
pôde tal figura, mesmo que por curtos anos, chegar a dirigir os destinos de uma
das nações econômica e culturalmente mais desenvolvidas e avançadas do mundo?
É
comum, hoje em dia, considerar-se que as abordagens se enquadram em duas
categorias principais, que passaram a ser denominadas de “intencionalista” e “estruturalista”
(ou funcionalista). No grupo “intencionalista” presume-se que a história do
nazismo é a da implementação programada e consecutiva das intenções ideológicas
de Hitler. Isto é, ele é concebido como uma clássica personificação do poder
num Estado totalitário.
A
abordagem contrastante, por outro lado, destacou o condicionamento das decisões
políticas pelas pressões “estruturais”, tais como as limitações econômicas ou
pelo “funcionamento” específico de alguns componentes-chaves do domínio
nazista. À luz disso, Hitler foi retratado como preocupado com a manutenção de
seu prestígio e de sua autoridade pessoal. Longe de ser um líder de poder
pessoal irrestrito, Hitler poderia ser encarado como sendo um ditador fraco.
O
“poder” pode ser abstratamente definido como “a probabilidade de que um ator,
dentro de uma relação social, fique em condições de exercer sua própria vontade
a despeito da resistência encontrada.” Uma chave para a compreensão da expansão
gradativa do poder de Hitler pode ser encontrada em outro conceito de Max
Weber: o de “dominação carismática”. Esse conceito se baseia nas percepções –
por parte de um “séquito” de adeptos – de heroísmo, grandiosidade e de uma “missão”
num “líder” proclamado. Tende a emergir em situações de crise e está sujeita a
ruir em virtude da impossibilidade de atender às expectativas ou por se “rotinizar”
num sistema capaz de se reproduzir somente através da eliminação da essência “carismática”.
Os
aspectos específicos da variação alemã da “dominação carismática” decorrem da
interação da crise generalizada que se vivenciou na Alemanha pós-Primeira
Guerra Mundial (e particularmente nos início dos anos trinta) com alguns traços
específicos da cultura política alemã.
No
início da década de trinta, estava à mão um pleiteante que era apoiado por uma
organização que trazia todas as marcas de uma “comunidade carismática”. Ela
abrangia o séquito imediato na elite da liderança nazista. Seu relacionamento
com Hitler era determinado por vínculos de lealdade pessoal de um tipo arcaico,
quase feudal. Outros defensores e exploradores cruciais do “carisma” de Hitler
eram os líderes e funcionários das organizações estatais – dentro das quais a
mais importante era a SS. Além deles, havia a massa de “adeptos de Hitler” na
população em geral.
O
“carisma” da personalidade de Hitler enraizava-se no poder que fluía – para os
que lhe eram receptivos – de sua “ideia”, seu credo político, juntamente com a
notável habilidade de agitar as massas.
Em
termos de aparência física, Hitler era inexpressivo. Os hábitos pessoais eram
rotineiros e conservadores. Embora seus conhecimentos fossem incompletos,
unilaterais e dogmaticamente inflexíveis, ele era inteligente e sagaz. Gostava
da companhia das mulheres, especialmente quando eram bonitas. Sabia fazer rir
os que o cercavam e tinha um forte senso de lealdade. Entretanto, essas
características pessoais teriam sido insuficientes para chamar a atenção para
Hitler. Mas seu credo político e a convicção com que o expressava
transformaram-no numa personalidade efetivamente extraordinária.
A
essência da visão pessoal do mundo de Hitler compreendia a crença na história
como uma luta racial, o antissemitismo radical, a conquista do “Lebensraum”
(espaço vital) à custa da Rússia e uma luta de vida ou morte, até o fim, contra
o marxismo – personificado, de maneira concreta, no “bolchevismo judaico” da
União Soviética. Em meados da década de 1920, portanto, Hitler havia
desenvolvido uma filosofia bem acabada, que lhe oferecia uma visão completa do
mundo, de seus males e de como superá-los.
Hitler
via a si mesmo como a mais rara das combinações: o “idealizador” e o “político”
– o executor da ideia. Foi a combinação de “profeta” e propagandista que deu a
vantagem de Hitler sobre todos os outros pretendentes potenciais à liderança na
elite suprema do Partido Nazista. Faltavam a outros nazistas destacados a
combinação do seu brilho demagógico, sua capacidade de mobilização e a unidade
e “força explicativa” universal de sua visão ideológica. Rudolf Hess era
introvertido. Julius Streicher não passava de um demagogo racista. Herrmann Göring
era mais um homem de ação do que de ideias. Ernst Röhm era militar e
organizador capaz, mas faltavam-lhe visão ideológica e talento retórico.
Heinrich Himmler era um bom administrador, mas dotado de personalidade fria e
desprovido de atrativos populares. Hans Frank era um tipo fraco e hesitante,
emotivo e subserviente. Todos esses líderes nazistas se juntaram ao Movimento
quando ele estava no ostracismo político, muito antes de chegar perto de
conquistar o poder. Dificilmente se pode considerar o oportunismo político como
a principal motivação de seu compromisso com a causa nazista. Na verdade,
central para esse núcleo da “comunidade carismática” foi o poder da
personalidade de Hitler.
A
questão de como pôde um candidato tão improvável chegar ao poder tem sido
formulada desde que Hitler foi nomeado Chanceler do Reich em 30 de janeiro de
1933. Foi como propagandista, agitador e demagogo incomumente talentoso que
Hitler, a princípio, atraiu as atenções. Foi Hitler que anunciou o programa do
Partido em 24 de fevereiro de 1920. O número de membros atingiu 2.000 no final
de 1920 e 3.300 em agosto de 1921. Foram as garantias financeiras de Dietrich
Eckardt, um dos mentores intelectuais de Hitler, somadas a uma contribuição de
60.000 marcos de um fundo do Reichswehr, obtida por Ernst Röhm e Karl Mayr, que
permitiram ao Partido comprar seu próprio jornal, o “Völkisher Beobachter”, no
início de 1921. O Partido continuou a se expandir rapidamente. Em fins de 1922,
havia aproximadamente 20.000 membros e, na época do Putsch, cerca de 50.000.
Hitler
roubou a cena durante seu julgamento, em fevereiro e março de 1924, dando a ele
o direito de ser encarado como a nova figura de proa do movimento. Depois de
sua libertação do presídio e da refundação do Partido em fevereiro de 1925,
todo o poder sobre as decisões relacionadas com questões ideológicas e
organizacionais residia na pessoa de Hitler. Nesse período, o culto a Hitler
institucionalizou-se plenamente. Um símbolo externo expressivo da supremacia de
Hitler foi a introdução da saudação “Heil Hitler” como uma forma compulsória de
cumprimento entre os membros do Partido.
A
força da posição de Hitler dentro do Partido remonta, principalmente, aos anos
de “ostracismo” de 1925-28. Na época em que começou a onda eleitoral do nazismo
no outono de 1929, a natureza do NSDAP como um “Partido do Führer”, no qual a
ideia e a organização eram inseparáveis de seu líder, estava firmemente
estabelecida.
O
atrativo do líder “carismático” para as massas tem apenas uma relação indireta
com a verdadeira personalidade e as atribuições de caráter desse líder.
Provavelmente para a maioria dos que acabaram votando nos nazistas as questões
prosaicas do “feijão com arroz” ou até o sentimento de que Hitler não poderia
sair-se pior do que os demais predominaram sobre o fervor ideológico. Depois de
1929-30, a multiplicidade de grupos de interesse que atuavam fora do Movimento
Nazista considerou o nazismo uma proposta atraente. Não obstante, uma vez
expostos ao nazismo, todos os adeptos potenciais ficaram também inevitavelmente
expostos à imagem “carismática” de Hitler. Este último inspirou, nos milhões
que se deixaram atrair, a convicção de ele, e somente ele, apoiado por seu
Partido, poderia por fim ao sofrimento vigente e conduzir a Alemanha a uma nova
grandeza. O texto nu e cru de seus discursos os revela como um catálogo de
banalidades e obviedades. Mas o clima, o cenário previamente montado e a aura
mística de grandeza messiânica em torno de Hitler tornavam eletrizantes suas
palavras para as plateias de massa.
Hitler
observou a propaganda como sendo, de longe, a tarefa mais importante do Partido
Nazista. Toda propaganda, de acordo com ele, tem que restringir seu nível
intelectual à compressão do membro mais estúpido de sua plateia. O tema tem que
ser explosivo. É agitar a raiva e a paixão e atiçar o fogo até que a multidão
se enfureça.
As
técnicas de propaganda de Hitler para conquistar as massas teriam pouco êxito,
entretanto, sem as condições externas – Depressão, o agravamento da crise de
governo e a desintegração dos partidos. Sem esse “mercado”, Hitler teria
continuado a ser uma preferência minoritária insignificante. Sua plena
conquista das massas veio somente após os nazistas silenciarem a opinião
pública oposicionista e adquirirem controle completo dos meios de comunicação
de massa. Acima de tudo, a imagem que a propaganda nazista retratava
reiteradamente era a do poder, da força, do dinamismo e da juventude – uma marcha
inexorável para o triunfo, um futuro a ser conquistado pela confiança no
Führer.
Nota:
Este texto compreende uma síntese dos capítulos 1 e 2 do livro homônimo de
Kershaw. Para um entendimento mais completo do poder de Hitler sugere-se a
leitura do livro.
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