domingo, 6 de outubro de 2013

[POL] A Biblioteca esquecida de Hitler

Timothy W. Ryback

 
Os livros que constituem a Biblioteca Hitler foram descobertos em uma mina de sal próximo a Berchtesgaden ao acaso na primavera de 1945 por soldados da 101ª. Divisão Aerotransportada dentro de caixas de aguardente com o endereço da Chancelaria do Reich gravado nelas. Após uma longa avaliação inicial no “ponto de coleta” militar dos EUA em Munique, os livros, 3.000 volumes, foram despachados para os Estados Unidos e transferidos em janeiro de 1952 para a Biblioteca do Congresso, onde um funcionário foi indicado para descarregar a coleção.

“O funcionário fez o que chamamos de triagem seletiva,” diz David Moore, um assistente de aquisições alemãs na Biblioteca do Congresso. “Se um livro não era 100% certo, se não havia nenhuma informação, nenhuma inscrição para o Führer, ele descartou.” De acordo com Moore, cópias duplicadas foram enviadas para a divisão de troca-e-doação e então tanto para outras bibliotecas quanto para o comércio; os livros não duplicados que não puderam ser totalmente identificados foram absorvidos na coleção geral da Biblioteca do Congresso.

Os 1.200 volumes que sobreviveram à “triagem seletiva” juntaram-se à coleção de livros raros no terceiro andar do prédio Jefferson, onde eles foram informalmente identificados por uma placa grande suspensa por uma corda onde se lê “Biblioteca Hitler. Somente esta baia. Por favor, recoloque os livros nos locais apropriados.”

A placa acabou sendo removida, os livros realocados muitas vezes e a coleção eufemisticamente renomeada “Coleção Terceiro Reich”. Os livros podem ser ordenados, cinco de uma vez, a partir da mesa principal na sala de leitura de livros raros. Quando visitei a primeira vez a coleção, em abril de 2001, menos da metade dos 1.200 livros estavam na Biblioteca do Congresso e somente 200 daqueles estavam listados no catálogo online; os restantes mil títulos estavam listados alfabeticamente por autor em fichas amarelas em um gaveteiro de madeira de estilo antigo, muitos ainda identificados pelos números provisórios que lhes foram dados no início dos anos 1950. Jerry Wager, chefe da sala de leitura de livros raros me disse na época, “Processar esta coleção não tem sido uma prioridade para nós.”; ele também disse que os livros foram realocados novamente nos últimos meses.

“Nós rotineiramente movemos coleções para fazer uso melhor do espaço existente e para acomodar novas aquisições,” disse ele. Um cavalheiro de meia-idade com uma barba grisalha bem aparada, Wager é um mestre da discrição. Quando lhe perguntei sobre o novo local da coleção de Hitler, ele respondeu, “Por motivos de segurança, não revelamos onde as coleções estão localizadas no prédio.” Ele é igualmente circunspecto em relação aos pesquisadores que estudaram previamente a coleção, simplesmente notando que os livros são solicitados somente umas poucas vezes por ano, e geralmente por pessoas procurando volumes específicos ao invés de uma oportunidade para estudar a coleção como um todo.

Os livros tinham sido apenas recentemente desencaixotados e eu estava intrigado pelo que eu encontraria lá. Para a decepção de Gehardt Weinberg, uma autoridade no período nazista, a Biblioteca de Hitler parecia consistir em sua maioria de cópias presenteadas por autores ou editores. “Há poucas provas de que muitos desses livros tenham feito parte de sua biblioteca pessoal, e mesmo menos evidência de ele os tenha lido,” diz Weinberg.

Mais significativas são as anotações às margens das páginas dos livros. O habito de Hitler de marcar conceitos-chaves e passagens é compatível com sua teoria da “arte da leitura”. No capítulo 2 do Mein Kampf, ele observa:

Um homem que possua a arte da leitura correta, ao estudar qualquer livro, revista ou panfleto, irá perceber imediata e instintivamente tudo o que em sua opinião é digno de lembrança permanente, tanto porque está de acordo com seu objetivo quanto por ser interessante conhecer... Então, se a vida de repente exigir algumas questões diante de nós para análise ou resposta, a memória, se este método de leitura for observado... desviará todos os itens em relação a estas questões, criadas ao longo das décadas e submetê-las à mente para análise e reconsideração, até que a questão seja clarificada ou respondida.

Nestas anotações de margem, vemos um homem (que era conhecido por jamais escutar as pessoas, para quem “conversação” era um pouco mais do que uma torrente de monólogos) lendo passagens, refletindo sobre elas e respondendo com rabiscos de caneta, marcações, perguntas e pontos de exclamação e sublinhando – marcas intelectuais ao longo da página. Aqui está uma das figuras mais complexas da história reduzida meramente a um leitor com um livro e uma caneta.

Por meio das memórias de Kubizek, publicadas originalmente nos anos 1950, sua descrição do futuro Führer como um bibliófilo foi amplamente corroborada. Um dos principais primos de Hitler, Johann Schmidt, recontou para a história do Führer publicada pelo Partido Nazista que quando Hitler passava os verões com parentes no pequeno vilarejo de Waldviertel, em Spital, ele invariavelmente chegava com “pilhas de livros que ele constantemente lia e trabalhava.”

Hans Frank, advogado pessoal de Hitler e “governador” da Polônia ocupada pelos nazistas, lembrou antes de sua execução em 1946 em Nuremberg que Hitler carregava uma cópia de “Mundo como Vontade e Representação” de Schopenhauer consigo durante a Primeira Guerra Mundial. Durante sua prisão após o putsch fracassado de Munique em 1923, Hitler era regularmente presenteado com material de leitura por amigos e associados. Ele certa vez se referiu à sua estadia na prisão de Landsberg como sua “universidade paga pelo Estado”. Durante um surto de tristeza na prisão em dezembro de 1924, ele recebeu um pacote de Winifred Wagner, nora do compositor Richard Wagner e uma das poucas pessoas que se dirigiam a Hitler com o informal “você”.

Livros parecem ter sido uma dádiva de escolha para Hitler em virtualmente qualquer ocasião. A Biblioteca Hitler contém pilhas de livros contendo inscrições para Natal, seu aniversário e outras ocasiões festivas. Um livro intitulado “Morte e Imortalidade na Visão dos Pensadores Indogermãnicos” está marcado para Hitler pelo chefe da SS Heinrich Himmler na ocasião do Yule 1938 (festival religioso pagão germânico), a versão nazista do Natal. Também descobri livros da cineasta controversa Leni Riefenstahl – dois sobre a Olimpíada de Berlim e um conjunto de oito volumes dos trabalhos completos do filósofo alemão Johann Gottlieb Fichte em uma rara primeira edição. Considerando que Hitler incumbiu Riefenstahl com a filmagem dos Jogos Olímpicos, a presença dos dois primeiros volumes é compreensível; o de Fitche é mais enigmático.

Quando procurei Riefenstahl (1902 – 2003), que vive nos arredores de Munique e acabou de completar seu centésimo aniversário, ela me recomendou suas memórias publicadas, nas quais ela dedica um capítulo aos volumes de Fitche. De acordo com o relato, na primavera de 1933, a cineasta de trinta anos se aproximou de Hitler para ajudar muitos amigos judeus. “Tenho grande estima por você como artista, você tem um raro talento,” respondeu Hitler, de acordo com Riefenstahl. “Mas não posso discutir o problema judeu contigo.” Assustada por essa repreensão (Riefenstahl diz que ela se sentiu fraca), ela mais tarde tentou fazer as pazes enviando a Hitler o Fitche. Adornados em capa de couro branco com letras douradas, os livros trazem a inscrição “Para o meu querido Führer com a mais profunda admiração, Leni Riefenstahl.”

Alimentada por doações e suas próprias aquisições, a biblioteca de Hitler cresceu dramaticamente no final dos anos 1920 e início dos anos 1930. Em sua declaração de imposto de renda de 1925, Hitler listou seus bens pessoais como irrisórios 1.000 marcos e “nenhuma propriedade” exceto “uma escrivaninha e duas estantes com livros.”

Em 1930, contudo, as vendas do Mein Kampf turbinaram sua renda e a compra de livros representou sua terceira maior fonte de abatimento de imposto (após viagem e transporte): 1.692 marcos em 1930, com deduções semelhantes nos dois anos seguintes. Mais revelador ainda é a política de seguro de cinco anos que Hitler contratou em outubro de 1934, com a Companhia de Seguros Gladbacher Fire cobrindo seu apartamento de seis quartos na Prinzregentenplatz no centro de Munique.

Na carta de aceitação acompanhando o contrato, Hitler avaliou sua coleção de livros, dizendo que ela consistia de 6.000 volumes a um valor de 150.000 marcos, metade do valor do seguro completo. A outra metade representava suas obras de arte.

No final dos anos 1930, Hitler tinha três bibliotecas separadas para sua sempre crescente coleção. Em seu apartamento, ele removeu uma parede entre dois quartos e instalou estantes. Em Berghof, sua pousada de descanso próximo a Berchtesgaden, Hitler construiu um estúdio de dois andares com estantes feitas sob encomenda; fotografias coloridas do espaço concluído mostram um espaço elegante com tapetes orientais, dois globos e estantes com portas de vidro e maçanetas de bronze.

Herbert Dohring, que administrou Berghof de 1936 a 1943, me disse que a biblioteca poderia acomodar não mais que 500 ou 600 volumes. “Ele reservou este espaço para os livros com os quais realmente se importava,” diz Dohring, que ajudou Hitler a organizar os livros. “Ele costumava enviar o resto para um local de armazenamento em Munique ou à nova Chancelaria do Reich em Berlim.”

Para sua residência oficial em Berlim, Hitler tinha seu arquiteto, Albert Speer, que projetou uma enorme biblioteca que ocupava todo lado oeste. “Registros de inventário da Chancelaria do Reich que encontramos no Instituto Hoover em Stanford sugerem que no início de 1940 Hitler estava recebendo cerca de 4.000 livros anualmente,” disse-me Daniel Mattern. Em Munique, Gassert e Mattern também descobriram esboços arquitetônicos para um anexo da biblioteca em Berghof que deveria acomodar mais de 60.000 volumes. “Este era um homem com muitos livros,” diz Mattern.

Infelizmente, Hitler nunca inventariou seus livros e o único registro detalhado de suas bibliotecas vem da cortesia do antigo correspondente da United Press, Frederick Öchsner, que encontrou-se com Hitler repetidamente e era capaz de ficar informado intimamente sobre as coleções de livros do Führer. “Eu acho que sua biblioteca pessoal, que é dividida entre sua residência na Chancelaria em Berlim e sua casa de campo em Obersalzberg em Berchtesgaden, contém quase 16.300 livros,” escreveu Öchsner em seu livro de sucesso Este é o Inimigo (1942).

De acordo com Öchsner, a maior parte da biblioteca de Hitler, cerca de 7.000 lvros, era devotada a assuntos militares, em particular “as campanhas de Napoleão, os reis prussianos; as vidas de todos os potentados alemães e prussianos que tiveram algum papel militar; e livros sobre virtualmente tudo das campanhas militares mais conhecidas na história registrada.”

Outros 1.500 volumes se referiam a arquitetura, teatro, pintura e escultura. “Um livro sobre teatro espanhol tem desenhos pornográficos, mas não há nenhuma seção sobre pornografia, ou algo parecido, na biblioteca de Hitler,” escreveu Öchsner. O equilíbrio das coleções consistia de grupos de livros sobre diversos temas abarcando desde nutrição e saúde até religião e geografia, com “oitocentos a mil livros” de “ficção popular, simples, a maioria dos quais puro lixo na linguagem popular.”

Segundo o próprio Hitler, ele não era um grande fã de romances ou aventuras, apesar dele ter classificado trabalhos como As Viagens de Gulliver, Robinson Crusoe e Don Quixote (ele tinha afeição pela edição ilustrada por Gustave Dore) entre os maiores textos literários do mundo.

Ninguém sabe a extensão exata da biblioteca de Hitler. Apesar de Öchsner ter estimado a coleção original em 16.000 volumes, Gassert e Mattern afirmam que é impossível determinar as dimensões reais, especialmente pelo fato de que a maioria dos livros terem sido queimados ou roubados nas semanas finais da guerra, uma suposição confirmada em parte por Florian Beierl, chefe do Arquivo para História Contemporânea de Obersalzberg, em Berchtesgaden.

De acordo com Beierl, a Berghof de Hitler experimentou sucessivas ondas de saqueadores: primeiro os habitantes locais, então os soldados franceses e americanos e eventualmente os membros do Senado americano. Beierl mostrou-me filme documentário de uma delegação dos senadores americanos Burton Wheeeler, Homer Capehart e Ernest McFarland saindo das ruínas de Berghof com livros debaixo dos braços. “Duvido que eles os estivessem levando para a Biblioteca do Congresso,” disse Beierl.

Também fui informado que uma parte da Biblioteca Hitler pode ter sido confiscada pelo Exército Vermelho. “Stalin era tão paranoico sobre Hitler que ele enviou brigadas de assalto procurar qualquer coisa conectada a ele,” diz Konstantin Akinsha, um antigo pesquisador da Comissão Presidencial para Bens do Holocausto nos Estados Unidos. “Seu crânio, seus uniformes, os vestidos de Eva Braun, seu maiô, tudo está em Moscou.” Akinsha me disse recentemente que no início dos anos 1990, ele ouviu boatos de um depósito em uma igreja abandonada em Uzkoe, um subúrbio de Moscou, que supostamente deve conter uma grande quantidade de “livros troféus”, incluindo alguns que pertenceram a Hitler.

Em dezenas de livros, com saudações de personalidades como o Príncipe August Wilhelm, filho do último Imperador Alemão, e os herdeiros da dinastia de piano Bechstein, vi Hitler o protegido da elite financeira, social e cultural da Alemanha. Um livro sobre “liderança” foi presenteado a Hitler pelo industrial Fritz Thyssen, que havia o introduzido a alguns dos líderes capitalistas em um encontro decisivo em Düsseldorf em janeiro de 1932.

Encontrei, contudo, algo de Hitler que não havia antecipado: um homem com um interesse verdadeiro em espiritualidade. Entre as pilhas de bobagem nazista estão mais de 130 livros sobre religião e assuntos espirituais, abarcando desde ocultismo ocidental até misticismo oriental, passando por ensinamentos de Jesus Cristo  com títulos como Meditações do Domingo; Sobre o Devoto; Uma Força para Questões Religiosas, Grandes e Pequenas; Grandes Verdades sobre a Humanidade, O Mundo e Deus.

Estudiosos desde então se dividiram em duas correntes em relação às crenças espirituais de Hitler. Ian Kershaw argumenta que Hitler conscientemente construiu uma imagem própria de uma figura messiânica e eventualmente começou a acreditar no próprio mito que criou. “Quanto mais sucumbia ao apelo de seu próprio culto ao Führer e acreditava em seu próprio mito, mais seu julgamento começou a ficar influenciado pela fé em sua própria infalibilidade,” escreveu Kershaw em O Mito Hitler (1987).* Mas acreditar em mito messiânico não é a mesma coisa que acreditar em Deus.

Quando perguntei a Kershaw em 2001 se ele achava que Hitler realmente acreditava na providência divina, ele descartou a ideia. “Não acho que ele tinha qualquer crença real em uma deidade de qualquer tipo, somente em si mesmo como um “homem do destino” que salvaria  a Alemanha,” declarou ele. Gerhard Weinberg, que ajudou a organizar a Biblioteca Hitler ainda nos anos 1950, também descarta a noção de Hitler como um devoto religioso, insistindo que ele era movido pelas paixões gêmeas Blut und Boden, pureza racial e expansão territorial. “Ele não acreditava em nada exceto ele mesmo,” disse-me Weinberg no último verão. A maioria dos historiadores tende a concordar.

Alguns não-historiadores, contudo, tendem a ter pontos de vista diferentes. Nos anos 1960, Friedrich Heer, um proeminente e controverso teólogo vienense, identificou Hitler como um “Católico austríaco” mal orientado, um homem cuja fé estava desastrosamente mal colocada mas mesmo assim sincera. Em um tratado volumoso de 750 páginas, Heer estudou Hitler, o católico sob todos os ângulos: o coroinha tomando seu primeiro contato com a suástica no brasão do Monastério Lambach; o orador da cervejaria cujos discursos ressoaram com alusões bíblicas; o Führer do Reich que recriou o esplendor da massa católica nas reuniões anuais de Nuremberg.    

Mesmo o seu virulento ódio contra a judiaria tem sustentação nestas raízes. Fritz Redlich, um proeminente psiquiatra de Yale, afirma isso em seu livro, Hitler: Diagnóstico de um Profeta Destruidor, que Hitler agiu com uma profunda fé em Deus. Notando as próprias palavras de Hitler, “Você não pode ficar em torno do conceito de Deus”, Redlich me disse no verão passado que ele estava certo que Hitler acreditava em um “ser superior”. Ele rejeitava suposições de que as invocações de Hitler do divino fossem um pouco mais do que exibição pública cínica e insistiu que devemos medir Hitler por suas palavras: “De um certo modo, Hitler era um mentiroso terrível, mas ele era um mentiroso tático. Em sua linha de pensamento essencial, ele era honesto.”

Traudl Junge, a antiga secretária de Hitler, foi mais longe dizendo que Hitler acreditava em Deus, mas ela acreditava que as repetidas referências de Hitler ao divino eram apenas exibição. Junge, que morreu de câncer em fevereiro do ano passado, me disse que Hitler falava de tais coisas em privativo assim como em público. Após dois anos e meio de contato diário com Hitler, ela ficou convencida de que ele acreditava numa espécie de proteção divina, especialmente após sobreviver a uma tentativa de assassinato dramática em 1944. “Após o ataque de julho de 1944,” ela me disse, “acredito que ele se sentiu um instrumento da providência e acreditava que ele tinha uma missão a ser realizada.”

A historiografia oficial declara que Hitler flertou com o ocultismo no início dos anos 1920, e que ele recrutou alguns de seus parceiros ideológicos mais próximos Rudolf Hess, Alfred Rosenberg, Martin Bormann e Heinrich Himmler da Sociedade Thule e de cultos nórdicos semelhantes. “Quando conheci Hitler pela primeira vez em Munique em 1921 e 1922, ele estava em contato com um círculo que acreditava firmemente no poder dos eventos astrológicos,” lembrou Karl Wiegand, um antigo associado de Hitler, à revista Cosmopolitan em 1939.

Havia muitos boatos sobre a vinda de “outro Carlos Magno e um novo Reich.” O quanto Hitler acreditava nestas previsões e profecias astrológicas naqueles dias, não consegui extrair isso do Führer. Ele nem negava e nem afirmava tais crenças. Ele não era avesso, contudo, a fazer uso de previsões para prever a fé popular nele e em seu então novo movimento revolucionário.

A maioria dos eruditos descarta a noção de que Hitler seriamente acreditava nas ideias destes cultos, mas as anotações de margem de seus livros confirmam pelo menos um compromisso intelectual na substância do ocultismo da era Weimar. A coleção Brown** contém livros de tais figuras como Adamant Rohm, um “médico magnetopata” de Wiesbaden; Carl Ludwig Schleich, um médico berlinense pioneiro no uso de anestesia local; e Joseph Anton Schneiderfranken, que escreveu vários livros sobre reencarnação e fenômenos sobrenaturais sob o pseudônimo de Bo Yin Ra.

Um dos mais velhos volumes de literatura ainda na Biblioteca Hitler é uma edição alemã de 1917 de Peer Gynt, o épico de Henrik Ibsen de um “Fausto Nórdico” que, sem nenhum caráter, faz o que quer, quando quer, sem medir as consequências de seus atos. O texto relata suas aventuras da adolescência à velhice: irresponsável na juventude, torna-se um homem de negócios sem escrúpulos, que trafica escravos e armas. Peer Gynt enriquece, perde tudo, caminha pelo mundo. Quando desafiado a contar suas várias transgressões, Gynt declara que preferiria queimar no inferno por pecados em excesso do que a calmaria na obscuridade com o resto da humanidade. A cópia de Peer Gynt de Hitler, belamente ilustrada por Otto Sager, traz uma inscrição simples de seu tradutor alemão: “Dedicado ao seu estimado amigo Adolf Hitler. Dietrich Eckart. Munique, 22 de outubro de 1921.”

Poucas pessoas poderiam chamar Hitler de “amigo” e muitos menos de “estimado amigo”. Para Hitler, Eckart era tanto amigo quanto uma família, um mentor e uma figura paterna. Quando os dois se entraram pela primeira vez, no final de 1919, Hitler era um iniciante político de trinta anos de idade, saído das trincheiras há pouco mais de um ano, sem um tostão no bolso. Eckart era um autor de tetro de cinquenta anos de idade com um sucesso em cartaz (Peer Gynt), um  bigode em forma de pincel, um viciado em morfina e com um ódio lendário contra os judeus; um jornal de Munique o descreveu como “antissemita feroz” que “consumiria meia dúzia de judeus junto com seu chucrute.”

Inquestionavelmente, o volume mais importante não lido na coleção Hitler é a edição de 1940 de O Mito do Século Vinte, de Alfred Rosenberg, o clássico nazista que, com mais de um milhão de cópias impressas na época, era o segundo livro mais importante após o Mein Kampf para o movimento nazista.

Ao longo de suas 800 páginas, Rosenberg definiu a base para uma Igreja Nacional Alemã cujo objetivo era agrupar “o melhor das igrejas protestante e católica” e eliminar o “Velho Testamento infestado de judaísmo”. Denunciando os evangelhos de Mateus, Marco, Lucas e João como uma “falsificação da grande imagem de Cristo”, Rosenberg anteviu um “quinto evangelho” descrevendo Jesus como um superhomem ariano: “O orador poderoso e o profeta em fúria no Templo, o homem que inspirou e que todos seguiam, não a ovelha para sacrifício dos profetas judeus, não o homem da cruz.”

Apesar das tentativas repetidas de Rosenberg de estabelecer seu Mito como doutrina oficial do partido, Hitler insistiu que o livro era uma “publicação particular” que representava as opiniões pessoais de Rosenberg. Em conversas, Hitler admitia que ele havia lido somente “pequenas partes” dele e o descrevia como ilegível. Joseph Goebbels concordou, chamando O Mito de um “arroto intelectual”.

A leitura ou não de Hitler dos textos pseudoteológicos em sua biblioteca torna estes livros que ele leu, e em especial aqueles que ele deixou anotações de margem, todos significativos. Aqui é onde a Biblioteca Hitler é mais útil. Nos volumes Fichte dados a ele por Riefenstahl, encontrei uma verdadeira tempestade de grifos, pontos de interrogação e de exclamação e marcas de margem que varrem centenas de páginas de prosa teológica.

Onde Fichte destrincha os enigmas espirituais da Santa Trindade, posicionando o Pai como “uma força universal natural”, o Filho como “o corpo físico desta força” e o Espírito Santo como uma expressão da “luz da razão”, Hitler não somente sublinhou toda a passagem, mas colocou uma linha vertical grossa na margem, e acrescentou um ponto de exclamação.

Enquanto eu percorria as anotações à caneta, percebi que Hitler estava buscando um caminho para o divino que o levou a um único lugar. Fichte perguntou, “Onde Jesus obteve o poder que tem dado a seus seguidores o caminho da eternidade?” Hitler desenhou uma linha grossa sob a resposta: “Através de sua absoluta identificação com Deus.” Em outro ponto, Hitler marcou um parágrafo curto porém revelador: “Deus e eu somos Um. Expresso simplesmente em duas sentenças idênticas, Sua vida é minha; minha vida é Sua. Meu trabalho é Seu trabalho, e Seu trabalho é meu trabalho.”

Em dezembro de 1941, Hitler disse a alguns convidados, “Se existe um Deus, então Ele nos dá não somente a vida, mas também a consciência e a atenção. Se viver minha vida de acordo com meus sentimentos dados por Deus, então não posso fazer errado, e mesmo que eu faça, saberei que agi de boa fé.”

Mas Hitler acreditava que o mortal e o divino eram um só e o mesmo: que o Deus que ele estava buscando era, na verdade, ele próprio.       

Nota:

* ver tópico: Hitler, um perfil de poder.


** Coleção de livros de Hitler doados pelo sobrinho do coronel Albert Aronson à Universidade Brown em 1979. Aronson conseguiu os livros quando esteve no bunker de Hitler em maio de 1945.    


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A Formação do Pensamento Político de Adolf Hitler


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