“O funcionário fez o que chamamos de triagem seletiva,” diz David Moore, um assistente de aquisições alemãs na Biblioteca do Congresso. “Se um livro não era 100% certo, se não havia nenhuma informação, nenhuma inscrição para o Führer, ele descartou.” De acordo com Moore, cópias duplicadas foram enviadas para a divisão de troca-e-doação e então tanto para outras bibliotecas quanto para o comércio; os livros não duplicados que não puderam ser totalmente identificados foram absorvidos na coleção geral da Biblioteca do Congresso.
Os
1.200 volumes que sobreviveram à “triagem seletiva” juntaram-se à coleção de
livros raros no terceiro andar do prédio Jefferson, onde eles foram informalmente
identificados por uma placa grande suspensa por uma corda onde se lê
“Biblioteca Hitler. Somente esta baia. Por favor, recoloque os livros nos
locais apropriados.”
A
placa acabou sendo removida, os livros realocados muitas vezes e a coleção eufemisticamente
renomeada “Coleção Terceiro Reich”. Os livros podem ser ordenados, cinco de uma
vez, a partir da mesa principal na sala de leitura de livros raros. Quando
visitei a primeira vez a coleção, em abril de 2001, menos da metade dos 1.200
livros estavam na Biblioteca do Congresso e somente 200 daqueles estavam
listados no catálogo online; os restantes mil títulos estavam listados alfabeticamente
por autor em fichas amarelas em um gaveteiro de madeira de estilo antigo,
muitos ainda identificados pelos números provisórios que lhes foram dados no
início dos anos 1950. Jerry Wager, chefe da sala de leitura de livros raros me
disse na época, “Processar esta coleção não tem sido uma prioridade para nós.”;
ele também disse que os livros foram realocados novamente nos últimos meses.
“Nós
rotineiramente movemos coleções para fazer uso melhor do espaço existente e
para acomodar novas aquisições,” disse ele. Um cavalheiro de meia-idade com uma
barba grisalha bem aparada, Wager é um mestre da discrição. Quando lhe
perguntei sobre o novo local da coleção de Hitler, ele respondeu, “Por motivos
de segurança, não revelamos onde as coleções estão localizadas no prédio.” Ele
é igualmente circunspecto em relação aos pesquisadores que estudaram
previamente a coleção, simplesmente notando que os livros são solicitados
somente umas poucas vezes por ano, e geralmente por pessoas procurando volumes
específicos ao invés de uma oportunidade para estudar a coleção como um todo.
Os
livros tinham sido apenas recentemente desencaixotados e eu estava intrigado
pelo que eu encontraria lá. Para a decepção de Gehardt Weinberg, uma autoridade
no período nazista, a Biblioteca de Hitler parecia consistir em sua maioria de
cópias presenteadas por autores ou editores. “Há poucas provas de que muitos
desses livros tenham feito parte de sua biblioteca pessoal, e mesmo menos
evidência de ele os tenha lido,” diz Weinberg.
Mais
significativas são as anotações às margens das páginas dos livros. O habito de
Hitler de marcar conceitos-chaves e passagens é compatível com sua teoria da
“arte da leitura”. No capítulo 2 do Mein Kampf, ele observa:
Um
homem que possua a arte da leitura correta, ao estudar qualquer livro, revista
ou panfleto, irá perceber imediata e instintivamente tudo o que em sua opinião
é digno de lembrança permanente, tanto porque está de acordo com seu objetivo
quanto por ser interessante conhecer... Então, se a vida de repente exigir
algumas questões diante de nós para análise ou resposta, a memória, se este
método de leitura for observado... desviará todos os itens em relação a estas
questões, criadas ao longo das décadas e submetê-las à mente para análise e
reconsideração, até que a questão seja clarificada ou respondida.
Nestas
anotações de margem, vemos um homem (que era conhecido por jamais escutar as
pessoas, para quem “conversação” era um pouco mais do que uma torrente de
monólogos) lendo passagens, refletindo sobre elas e respondendo com rabiscos de
caneta, marcações, perguntas e pontos de exclamação e sublinhando – marcas
intelectuais ao longo da página. Aqui está uma das figuras mais complexas da
história reduzida meramente a um leitor com um livro e uma caneta.
Por
meio das memórias de Kubizek, publicadas originalmente nos anos 1950, sua
descrição do futuro Führer como um bibliófilo foi amplamente corroborada. Um
dos principais primos de Hitler, Johann Schmidt, recontou para a história do
Führer publicada pelo Partido Nazista que quando Hitler passava os verões com
parentes no pequeno vilarejo de Waldviertel, em Spital, ele invariavelmente
chegava com “pilhas de livros que ele constantemente lia e trabalhava.”
Hans
Frank, advogado pessoal de Hitler e “governador” da Polônia ocupada pelos
nazistas, lembrou antes de sua execução em 1946 em Nuremberg que Hitler carregava
uma cópia de “Mundo como Vontade e Representação” de Schopenhauer consigo
durante a Primeira Guerra Mundial. Durante sua prisão após o putsch fracassado
de Munique em 1923, Hitler era regularmente presenteado com material de leitura
por amigos e associados. Ele certa vez se referiu à sua estadia na prisão de
Landsberg como sua “universidade paga pelo Estado”. Durante um surto de
tristeza na prisão em dezembro de 1924, ele recebeu um pacote de Winifred
Wagner, nora do compositor Richard Wagner e uma das poucas pessoas que se
dirigiam a Hitler com o informal “você”.
Livros
parecem ter sido uma dádiva de escolha para Hitler em virtualmente qualquer
ocasião. A Biblioteca Hitler contém pilhas de livros contendo inscrições para
Natal, seu aniversário e outras ocasiões festivas. Um livro intitulado “Morte e
Imortalidade na Visão dos Pensadores Indogermãnicos” está marcado para Hitler
pelo chefe da SS Heinrich Himmler na ocasião do Yule 1938 (festival religioso
pagão germânico), a versão nazista do Natal. Também descobri livros da cineasta
controversa Leni Riefenstahl – dois sobre a Olimpíada de Berlim e um conjunto
de oito volumes dos trabalhos completos do filósofo alemão Johann Gottlieb
Fichte em uma rara primeira edição. Considerando que Hitler incumbiu Riefenstahl
com a filmagem dos Jogos Olímpicos, a presença dos dois primeiros volumes é
compreensível; o de Fitche é mais enigmático.
Quando
procurei Riefenstahl (1902 – 2003), que vive nos arredores de Munique e acabou
de completar seu centésimo aniversário, ela me recomendou suas memórias
publicadas, nas quais ela dedica um capítulo aos volumes de Fitche. De acordo
com o relato, na primavera de 1933,
a cineasta de trinta anos se aproximou de Hitler para
ajudar muitos amigos judeus. “Tenho grande estima por você como artista, você
tem um raro talento,” respondeu Hitler, de acordo com Riefenstahl. “Mas não
posso discutir o problema judeu contigo.” Assustada por essa repreensão
(Riefenstahl diz que ela se sentiu fraca), ela mais tarde tentou fazer as pazes
enviando a Hitler o Fitche. Adornados em capa de couro branco com letras
douradas, os livros trazem a inscrição “Para o meu querido Führer com a mais
profunda admiração, Leni Riefenstahl.”
Alimentada
por doações e suas próprias aquisições, a biblioteca de Hitler cresceu
dramaticamente no final dos anos 1920 e início dos anos 1930. Em sua declaração
de imposto de renda de 1925, Hitler listou seus bens pessoais como irrisórios
1.000 marcos e “nenhuma propriedade” exceto “uma escrivaninha e duas estantes
com livros.”
Em
1930, contudo, as vendas do Mein Kampf turbinaram sua renda e a compra de
livros representou sua terceira maior fonte de abatimento de imposto (após
viagem e transporte): 1.692 marcos em 1930, com deduções semelhantes nos dois
anos seguintes. Mais revelador ainda é a política de seguro de cinco anos que
Hitler contratou em outubro de 1934, com a Companhia de Seguros Gladbacher Fire
cobrindo seu apartamento de seis quartos na Prinzregentenplatz no centro de
Munique.
Na
carta de aceitação acompanhando o contrato, Hitler avaliou sua coleção de
livros, dizendo que ela consistia de 6.000 volumes a um valor de 150.000
marcos, metade do valor do seguro completo. A outra metade representava suas
obras de arte.
No
final dos anos 1930, Hitler tinha três bibliotecas separadas para sua sempre
crescente coleção. Em seu apartamento, ele removeu uma parede entre dois
quartos e instalou estantes. Em Berghof, sua pousada de descanso próximo a
Berchtesgaden, Hitler construiu um estúdio de dois andares com estantes feitas
sob encomenda; fotografias coloridas do espaço concluído mostram um espaço
elegante com tapetes orientais, dois globos e estantes com portas de vidro e
maçanetas de bronze.
Herbert
Dohring, que administrou Berghof de 1936 a 1943, me disse que a biblioteca
poderia acomodar não mais que 500 ou 600 volumes. “Ele reservou este espaço para
os livros com os quais realmente se importava,” diz Dohring, que ajudou Hitler
a organizar os livros. “Ele costumava enviar o resto para um local de
armazenamento em Munique ou à nova Chancelaria do Reich em Berlim.”
Para
sua residência oficial em Berlim, Hitler tinha seu arquiteto, Albert Speer, que
projetou uma enorme biblioteca que ocupava todo lado oeste. “Registros de
inventário da Chancelaria do Reich que encontramos no Instituto Hoover em
Stanford sugerem que no início de 1940 Hitler estava recebendo cerca de 4.000
livros anualmente,” disse-me Daniel Mattern. Em Munique, Gassert e Mattern
também descobriram esboços arquitetônicos para um anexo da biblioteca em Berghof
que deveria acomodar mais de 60.000 volumes. “Este era um homem com muitos
livros,” diz Mattern.
Infelizmente,
Hitler nunca inventariou seus livros e o único registro detalhado de suas
bibliotecas vem da cortesia do antigo correspondente da United Press, Frederick
Öchsner, que encontrou-se com Hitler repetidamente e era capaz de ficar
informado intimamente sobre as coleções de livros do Führer. “Eu acho que sua
biblioteca pessoal, que é dividida entre sua residência na Chancelaria em
Berlim e sua casa de campo em Obersalzberg em Berchtesgaden, contém quase
16.300 livros,” escreveu Öchsner em seu livro de sucesso Este é o Inimigo (1942).
De
acordo com Öchsner, a maior parte da biblioteca de Hitler, cerca de 7.000
lvros, era devotada a assuntos militares, em particular “as campanhas de
Napoleão, os reis prussianos; as vidas de todos os potentados alemães e
prussianos que tiveram algum papel militar; e livros sobre virtualmente tudo
das campanhas militares mais conhecidas na história registrada.”
Outros
1.500 volumes se referiam a arquitetura, teatro, pintura e escultura. “Um livro
sobre teatro espanhol tem desenhos pornográficos, mas não há nenhuma seção
sobre pornografia, ou algo parecido, na biblioteca de Hitler,” escreveu
Öchsner. O equilíbrio das coleções consistia de grupos de livros sobre diversos
temas abarcando desde nutrição e saúde até religião e geografia, com
“oitocentos a mil livros” de “ficção popular, simples, a maioria dos quais puro
lixo na linguagem popular.”
Segundo
o próprio Hitler, ele não era um grande fã de romances ou aventuras, apesar
dele ter classificado trabalhos como As
Viagens de Gulliver, Robinson Crusoe
e Don Quixote (ele tinha afeição pela
edição ilustrada por Gustave Dore) entre os maiores textos literários do mundo.
Ninguém
sabe a extensão exata da biblioteca de Hitler. Apesar de Öchsner ter estimado a
coleção original em 16.000 volumes, Gassert e Mattern afirmam que é impossível
determinar as dimensões reais, especialmente pelo fato de que a maioria dos
livros terem sido queimados ou roubados nas semanas finais da guerra, uma
suposição confirmada em parte por Florian Beierl, chefe do Arquivo para
História Contemporânea de Obersalzberg, em Berchtesgaden.
De
acordo com Beierl, a Berghof de Hitler experimentou sucessivas ondas de
saqueadores: primeiro os habitantes locais, então os soldados franceses e
americanos e eventualmente os membros do Senado americano. Beierl mostrou-me
filme documentário de uma delegação dos senadores americanos Burton Wheeeler,
Homer Capehart e Ernest McFarland saindo das ruínas de Berghof com livros
debaixo dos braços. “Duvido que eles os estivessem levando para a Biblioteca do
Congresso,” disse Beierl.
Também
fui informado que uma parte da Biblioteca Hitler pode ter sido confiscada pelo
Exército Vermelho. “Stalin era tão paranoico sobre Hitler que ele enviou
brigadas de assalto procurar qualquer coisa conectada a ele,” diz Konstantin
Akinsha, um antigo pesquisador da Comissão Presidencial para Bens do Holocausto
nos Estados Unidos. “Seu crânio, seus uniformes, os vestidos de Eva Braun, seu
maiô, tudo está em Moscou.” Akinsha me disse recentemente que no início dos
anos 1990, ele ouviu boatos de um depósito em uma igreja abandonada em Uzkoe,
um subúrbio de Moscou, que supostamente deve conter uma grande quantidade de
“livros troféus”, incluindo alguns que pertenceram a Hitler.
Em dezenas de livros, com saudações de
personalidades como o Príncipe August Wilhelm, filho do último Imperador
Alemão, e os herdeiros da dinastia de piano Bechstein, vi Hitler o protegido da
elite financeira, social e cultural da Alemanha. Um livro sobre “liderança” foi
presenteado a Hitler pelo industrial Fritz Thyssen, que havia o introduzido a
alguns dos líderes capitalistas em um encontro decisivo em Düsseldorf em janeiro
de 1932.
Encontrei,
contudo, algo de Hitler que não havia antecipado: um homem com um interesse
verdadeiro em espiritualidade. Entre as pilhas de bobagem nazista estão mais de
130 livros sobre religião e assuntos espirituais, abarcando desde ocultismo ocidental
até misticismo oriental, passando por ensinamentos de Jesus Cristo com títulos como Meditações do Domingo; Sobre
o Devoto; Uma Força para Questões Religiosas, Grandes e Pequenas; Grandes
Verdades sobre a Humanidade, O Mundo e Deus.
Estudiosos
desde então se dividiram em duas correntes em relação às crenças espirituais de
Hitler. Ian Kershaw argumenta que Hitler conscientemente construiu uma imagem
própria de uma figura messiânica e eventualmente começou a acreditar no próprio
mito que criou. “Quanto mais sucumbia ao apelo de seu próprio culto ao Führer e
acreditava em seu próprio mito, mais seu julgamento começou a ficar
influenciado pela fé em sua própria infalibilidade,” escreveu Kershaw em O Mito
Hitler (1987).* Mas acreditar em mito messiânico não é a mesma coisa que
acreditar em Deus.
Quando
perguntei a Kershaw em 2001 se ele achava que Hitler realmente acreditava na
providência divina, ele descartou a ideia. “Não acho que ele tinha qualquer
crença real em uma deidade de qualquer tipo, somente em si mesmo como um “homem
do destino” que salvaria a Alemanha,”
declarou ele. Gerhard Weinberg, que ajudou a organizar a Biblioteca Hitler
ainda nos anos 1950, também descarta a noção de Hitler como um devoto religioso,
insistindo que ele era movido pelas paixões gêmeas Blut und Boden, pureza
racial e expansão territorial. “Ele não acreditava em nada exceto ele mesmo,”
disse-me Weinberg no último verão. A maioria dos historiadores tende a
concordar.
Alguns
não-historiadores, contudo, tendem a ter pontos de vista diferentes. Nos anos
1960, Friedrich Heer, um proeminente e controverso teólogo vienense,
identificou Hitler como um “Católico austríaco” mal orientado, um homem cuja fé
estava desastrosamente mal colocada mas mesmo assim sincera. Em um tratado volumoso
de 750 páginas, Heer estudou Hitler, o católico sob todos os ângulos: o
coroinha tomando seu primeiro contato com a suástica no brasão do Monastério
Lambach; o orador da cervejaria cujos discursos ressoaram com alusões bíblicas;
o Führer do Reich que recriou o esplendor da massa católica nas reuniões anuais
de Nuremberg.
Mesmo
o seu virulento ódio contra a judiaria tem sustentação nestas raízes. Fritz
Redlich, um proeminente psiquiatra de Yale, afirma isso em seu livro, Hitler: Diagnóstico de um Profeta Destruidor,
que Hitler agiu com uma profunda fé em Deus. Notando as próprias palavras de
Hitler, “Você não pode ficar em torno do conceito de Deus”, Redlich me disse no
verão passado que ele estava certo que Hitler acreditava em um “ser superior”.
Ele rejeitava suposições de que as invocações de Hitler do divino fossem um
pouco mais do que exibição pública cínica e insistiu que devemos medir Hitler
por suas palavras: “De um certo modo, Hitler era um mentiroso terrível, mas ele
era um mentiroso tático. Em sua linha de pensamento essencial, ele era honesto.”
Traudl
Junge, a antiga secretária de Hitler, foi mais longe dizendo que Hitler
acreditava em Deus, mas ela acreditava que as repetidas referências de Hitler
ao divino eram apenas exibição. Junge, que morreu de câncer em fevereiro do ano
passado, me disse que Hitler falava de tais coisas em privativo assim como em
público. Após dois anos e meio de contato diário com Hitler, ela ficou
convencida de que ele acreditava numa espécie de proteção divina, especialmente
após sobreviver a uma tentativa de assassinato dramática em 1944. “Após o
ataque de julho de 1944,” ela me disse, “acredito que ele se sentiu um
instrumento da providência e acreditava que ele tinha uma missão a ser
realizada.”
A
historiografia oficial declara que Hitler flertou com o ocultismo no início dos
anos 1920, e que ele recrutou alguns de seus parceiros ideológicos mais
próximos Rudolf Hess, Alfred Rosenberg, Martin Bormann e Heinrich Himmler da
Sociedade Thule e de cultos nórdicos semelhantes. “Quando conheci Hitler pela
primeira vez em Munique em 1921 e 1922, ele estava em contato com um círculo
que acreditava firmemente no poder dos eventos astrológicos,” lembrou Karl
Wiegand, um antigo associado de Hitler, à revista Cosmopolitan em 1939.
Havia
muitos boatos sobre a vinda de “outro Carlos Magno e um novo Reich.” O quanto
Hitler acreditava nestas previsões e profecias astrológicas naqueles dias, não
consegui extrair isso do Führer. Ele nem negava e nem afirmava tais crenças.
Ele não era avesso, contudo, a fazer uso de previsões para prever a fé popular
nele e em seu então novo movimento revolucionário.
A
maioria dos eruditos descarta a noção de que Hitler seriamente acreditava nas
ideias destes cultos, mas as anotações de margem de seus livros confirmam pelo
menos um compromisso intelectual na substância do ocultismo da era Weimar. A
coleção Brown** contém livros de tais figuras como Adamant Rohm, um “médico
magnetopata” de Wiesbaden; Carl Ludwig Schleich, um médico berlinense pioneiro
no uso de anestesia local; e Joseph Anton Schneiderfranken, que escreveu vários
livros sobre reencarnação e fenômenos sobrenaturais sob o pseudônimo de Bo Yin
Ra.
Um
dos mais velhos volumes de literatura ainda na Biblioteca Hitler é uma edição
alemã de 1917 de Peer Gynt, o épico de Henrik Ibsen de um “Fausto Nórdico” que,
sem nenhum caráter, faz o que
quer, quando quer, sem medir as consequências de seus atos. O texto relata suas
aventuras da adolescência à velhice: irresponsável na juventude, torna-se um
homem de negócios sem escrúpulos, que trafica escravos e armas. Peer Gynt
enriquece, perde tudo, caminha pelo mundo. Quando desafiado a contar suas
várias transgressões, Gynt declara que preferiria queimar no inferno por
pecados em excesso do que a calmaria na obscuridade com o resto da humanidade.
A cópia de Peer Gynt de Hitler, belamente ilustrada por Otto Sager, traz uma
inscrição simples de seu tradutor alemão: “Dedicado ao seu estimado amigo Adolf
Hitler. Dietrich Eckart. Munique, 22 de outubro de 1921.”
Poucas pessoas poderiam chamar Hitler de “amigo”
e muitos menos de “estimado amigo”. Para Hitler, Eckart era tanto amigo quanto
uma família, um mentor e uma figura paterna. Quando os dois se entraram pela
primeira vez, no final de 1919, Hitler era um iniciante político de trinta anos
de idade, saído das trincheiras há pouco mais de um ano, sem um tostão no
bolso. Eckart era um autor de tetro de cinquenta anos de idade com um sucesso
em cartaz (Peer Gynt), um bigode em
forma de pincel, um viciado em morfina e com um ódio lendário contra os judeus;
um jornal de Munique o descreveu como “antissemita feroz” que “consumiria meia
dúzia de judeus junto com seu chucrute.”
Inquestionavelmente, o volume mais importante
não lido na coleção Hitler é a edição de 1940 de O Mito do Século Vinte, de Alfred Rosenberg, o clássico nazista
que, com mais de um milhão de cópias impressas na época, era o segundo livro
mais importante após o Mein Kampf para o movimento nazista.
Ao
longo de suas 800 páginas, Rosenberg definiu a base para uma Igreja Nacional
Alemã cujo objetivo era agrupar “o melhor das igrejas protestante e católica” e
eliminar o “Velho Testamento infestado de judaísmo”. Denunciando os evangelhos
de Mateus, Marco, Lucas e João como uma “falsificação da grande imagem de
Cristo”, Rosenberg anteviu um “quinto evangelho” descrevendo Jesus como um
superhomem ariano: “O orador poderoso e o profeta em fúria no Templo, o homem
que inspirou e que todos seguiam, não a ovelha para sacrifício dos profetas
judeus, não o homem da cruz.”
Apesar
das tentativas repetidas de Rosenberg de estabelecer seu Mito como doutrina
oficial do partido, Hitler insistiu que o livro era uma “publicação particular”
que representava as opiniões pessoais de Rosenberg. Em conversas, Hitler
admitia que ele havia lido somente “pequenas partes” dele e o descrevia como ilegível.
Joseph Goebbels concordou, chamando O Mito de um “arroto intelectual”.
A
leitura ou não de Hitler dos textos pseudoteológicos em sua biblioteca torna
estes livros que ele leu, e em especial aqueles que ele deixou anotações de
margem, todos significativos. Aqui é onde a Biblioteca Hitler é mais útil. Nos
volumes Fichte dados a ele por Riefenstahl, encontrei uma verdadeira tempestade
de grifos, pontos de interrogação e de exclamação e marcas de margem que varrem
centenas de páginas de prosa teológica.
Onde
Fichte destrincha os enigmas espirituais da Santa Trindade, posicionando o Pai
como “uma força universal natural”, o Filho como “o corpo físico desta força” e
o Espírito Santo como uma expressão da “luz da razão”, Hitler não somente
sublinhou toda a passagem, mas colocou uma linha vertical grossa na margem, e
acrescentou um ponto de exclamação.
Enquanto
eu percorria as anotações à caneta, percebi que Hitler estava buscando um
caminho para o divino que o levou a um único lugar. Fichte perguntou, “Onde
Jesus obteve o poder que tem dado a seus seguidores o caminho da eternidade?”
Hitler desenhou uma linha grossa sob a resposta: “Através de sua absoluta
identificação com Deus.” Em outro ponto, Hitler marcou um parágrafo curto porém
revelador: “Deus e eu somos Um. Expresso simplesmente em duas sentenças
idênticas, Sua vida é minha; minha vida é Sua. Meu trabalho é Seu trabalho, e
Seu trabalho é meu trabalho.”
Em
dezembro de 1941, Hitler disse a alguns convidados, “Se existe um Deus, então
Ele nos dá não somente a vida, mas também a consciência e a atenção. Se viver
minha vida de acordo com meus sentimentos dados por Deus, então não posso fazer
errado, e mesmo que eu faça, saberei que agi de boa fé.”
Mas
Hitler acreditava que o mortal e o divino eram um só e o mesmo: que o Deus que
ele estava buscando era, na verdade, ele próprio.
Nota:
*
ver tópico: Hitler, um perfil de poder.
**
Coleção de livros de Hitler doados pelo sobrinho do coronel Albert Aronson à
Universidade Brown em 1979. Aronson conseguiu os livros quando esteve no bunker
de Hitler em maio de 1945.
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