Setenta e
cinco anos atrás, em 30 de setembro de 1938, o Primeiro Ministro britânico
Neville Chamberlain assinou o Pacto de Munique, cedendo partes da
Tchecoslováquia para a Alemanha de Adolf Hitler. Chamberlain retornou à
Grã-Bretanha sob aclamação popular, declarando que ele havia assegurado “paz
para nossa época”. Hoje, o primeiro ministro é geralmente retratado como um
ingênuo que estava errado em tentar “apaziguar” Hitler – uma estória de alerta
para qualquer líder ingênuo o suficiente para preferir a negociação ao invés do
confronto.
Mas entre os
historiadores, esta visão mudou ainda no final dos anos 1950, quando o governo
britânico começou a disponibilizar os registros da era Chamberlain aos
pesquisadores. “O resultado disto foi a descoberta de todos os tipos de fatores
que reduziram as opções do governo britânico em geral e reduziram as opções de
Neville Chamberlain em particular,” explica David Dutton, um historiador
britânico que escreveu uma recente biografia do primeiro ministro. “A evidência
era tão esmagadora,” diz ele, que muitos historiadores chegaram a acreditar que
Chamberlain “não podia fazer outra coisa a não ser o que ele fez” em Munique. Com o tempo,
diz Dutton, “o peso da historiografia começou a deslocar para uma apreciação
muito mais simpática” de Chamberlain.
Primeiro, uma
olhada na situação militar. A maioria dos historiadores concorda que o exército
britânico não estava preparado para a guerra com a Alemanha em setembro de
1938. Se a guerra tivesse acontecido com a crise tchecoeslovaca, a Grã-Bretanha
teria sido capaz de enviar somente duas divisões ao continente – e divisões más
equipadas, diga-se de passagem. Entre 1919 e março de 1932, a Grã-Bretanha baseou
seu planejamento militar em um “domínio de 10 anos”, que partia do pressuposto
de que ela não se envolveria em uma guerra de grandes proporções na próxima
década. O rearmamento somente começou em 1934 – e somente numa base limitada. O
exército britânico, como existia em setembro de 1938, não estava preparado para
uma guerra continental. Nem o rearmamento da Marinha ou da Força Aérea Real
completo. O rearmamento naval britânico recomeçou em 1936 como parte de um
programa de cinco anos. E, apesar da Luftwaffe de Hitler ter repetidamente
dobrado de tamanho no final dos anos 1930, não foi até abril de 1938 que o
governo britânico decidiu que sua força aérea poderia comprar tantos aviões
quantos pudessem ser fabricados.
Tudo isto
construído no que Chamberlain estava escutando de seus altos conselheiros
militares. Em março de 1938, os chefes de estado-maior militares britânicos
produziram um relatório que concluía que a Grã-Bretanha não poderia
possivelmente deter a Alemanha de tomar a Tchecoslováquia. Em geral, os
generais britânicos acreditavam que os militares e a nação não estavam
preparados para a guerra. Em 20 de setembro de 1938, o então coronel Hastings
Ismay, secretário do Comitê de Defesa Imperial, enviou uma nota para Thomas
Inskip, ministro para coordenação de defesa, e Sir Horace Wilson, um
funcionário público. O tempo estava ao lado da Grã-Bretanha, argumentava Ismay,
escrevendo que atrasar o início da guerra daria à Força Aérea Real tempo para
adquirir aviões que poderiam contrabalançar a Luftwaffe, o que ele considerava a
única chance de derrotar Hitler. Os estrategistas britânicos, incluindo Ismay,
acreditavam que seu país poderia ganhar uma guerra longa (desde que tivessem
tempo para se preparar para ela). Isto era uma crença comum e sem dúvida
construída nos cálculos de Chamberlain.
Os
historiadores discordam se a posição militar britânica relativa à Alemanha era
objetivamente melhor em 1939 do que ela era em 1938. Os militares britânicos
sistematicamente sobreestimaram o poder alemão e subestimaram o seu próprio
poder no período que antecedeu a crise da Tchecoslováquia, então mudou para um
tom mais otimista nos meses entre Munique e o início da guerra. Seja qual for a
situação em jogo, é claro que a confiança dos militares britânicos em suas
habilidades estava muito melhor em 1939 do que estava durante a crise de
Munique, especialmente por causa do desenvolvimento do radar e dos novos caças.
Em 1939, os militares acreditavam que estavam prontos. Em 1938, não.
As opções
diplomáticas de Chamberlain eram pequenas também. Na Primeira Guerra Mundial, a
declaração de guerra da Grã-Bretanha tinha trazido automaticamente o Canadá, a
Austrália e a Nova Zelândia na luta. Mas o status constitucional destes países
da Comunidade Britânica mudou no período entre guerras. De acordo com os
arquivos britânicos, estava longe de ser claro se Chamberlain poderia contar
com a ajuda destes países se a guerra eclodisse com a Alemanha por causa da
Tchecoslováquia. “Havia realmente uma sensação de que as chances estavam contra
o potencial da Grã-Bretanha ser capaz de prevalecer sobre a Alemanha e
potencialmente sobre a Itália e Japão, e com poucos aliados em potencial,” diz
Dutton. A Rússia soviética era vista como um inimigo em potencial a ser temido,
não um potencial aliado. As leis de neutralidade dos Estados Unidos tornavam
improvável de que mesmo um presidente desejoso poderia trazer os Estados Unidos
para a luta. Há também muita evidência nos arquivos que o governo britânico
tinha quase desprezo total pela estabilidade e habilidades militares da França,
seu único aliado principal de porte. A duração média de um governo da Terceira
República nos anos 1930 era de nove meses. Quando a guerra eclodiu, as dúvidas
de Chamberlain em relação ao poder de mobilização da França provaram ser
verdadeiras.
Nem o povo
britânico estava preparado para a guerra em setembro de 1938. “É fácil esquecer
que isto aconteceu somente 20 anos após o encerramento da última guerra,”
explica Dutton. Os políticos britânicos sabiam que o eleitorado não desejava
jamais fazer sacrifícios como aqueles feitos na Primeira Guerra. O Somme e
Passchendaele haviam deixado cicatrizes que ainda estavam abertas, e poucos, se
houvesse algum, dos líderes britânicos estavam preparados para pedir ao seu
povo para lutar aquelas batalhas novamente. Muitas pessoas viram a atuação da
Luftwaffe na Guerra Civil Espanhola e temiam que o bombardeio aéreo garantiria
que uma segunda guerra seria muito mais devastadora do que a primeira.*
Qualquer estratégia que afirmasse oferecer uma alternativa a enviar grandes
exércitos à Europa encontravam, portanto, simpatizantes em cada nível da
sociedade britânica. “Havia uma sensação de que qualquer político sensibilizado
exploraria todo caminho possível para evitar a guerra antes de aceitar que ela
era inevitável,” diz Dutton.
Se a
Grã-Bretanha tivesse que ir à guerra contra a Alemanha de Hitler, a maioria das
pessoas não queria fazê-lo por causa da Tchecoslováquia. “As pessoas falavam da
Tchecoslováquia como uma criação artificial,” diz Dutton. “A percepção nos anos
1930 era de que havia um problema, era passível de solução pela negociação e
que deveríamos tentar. Não era o tipo de coisa que uniria o país como um motivo
para ir à guerra.”
Nem é a visão
atual de como o ditador nazista era visto no final dos anos 1930. A Blitzkrieg e os
campos de concentração não eram ainda parte do imaginário popular. Os
britânicos já haviam negociado com um fascista, Benito Mussolini, por anos
antes de Hitler assumir o poder, e diplomatas britânicos de alto nível e
pensadores militares viam Hitler do mesmo modo como Mussolini – bravateiro ao
invés de um homem de ação. Além disso, muitos europeus achavam que as
exigências alemãs sobre as conseqüências da Primeira Guerra Mundial eram
legítimas. Hoje, vemos as ações de Hitler durante o início e meados dos anos
1930 como parte de uma marcha implacável em direção da guerra. Isto não era o
caso na época. O rearmamento alemão e a reocupação da Renânia pareciam
inevitáveis, pois manter um grande país como a Alemanha desarmada por décadas era
irreal. A união de Hitler da Áustria com a Alemanha parecia ser o que muitos
austríacos queriam. Mesmo as exigências por territórios da Tchecoslováquia eram
vistas, na época, como não necessariamente desarrazoadas – acima de tudo,
muitos alemães viviam naquelas terras.
Assim, quando
Chamberlain retornou de Munique com a notícia de que ele havia negociado um
acordo de paz, multidões alegres encheram as ruas e a imprensa regozijou-se.
Para o
crédito de Chamberlain, suas visões mudaram à medida que as intenções de Hitler
tornaram-se mais claras. Quando Hitler tomou Praga e o coração da República
Tcheca em março de 1939 – sua primeira invasão de uma área que não tinha
nenhuma raiz alemã – Chamberlain disse que temia que isso poderia representar
uma “tentativa de dominar o mundo pela força.” Ele duplicou o tamanho do
Exército Territorial (a versão britânica da Guarda Nacional) e, em 20 de abril
lançou o alistamento em tempos de paz pela primeira vez na história da
Grã-Bretanha. Então, em 3 de setembro, cerca de 11 meses após Munique, ele
conduziu seu país à guerra.
Os
historiadores frequentemente acham-se em posição oposta à opinião pública. No
caso de Chamberlain, contudo, o lapso entre a percepção pública e os registros
históricos serve para objetivos políticos. A estória que nos é contada de
Munique é sobre a futilidade e ingenuidade de buscar a paz. Nos debates
políticos americanos, as palavras “apaziguamento” e “Munique” são usadas para
rebater os argumentos daqueles que lutam contra a guerra. Mas toda guerra não é
a Segunda Guerra Mundial, e todo ditador não é Hitler. Deveríamos culpar
Chamberlain por postergar uma luta potencialmente desastrosa que seus
conselheiros militares se posicionaram contra, seus aliados não estavam
preparados e seu povo não apoiava? “As pessoas deveriam tentar se colocar na
posição do chefe do governo britânico nos anos 1930,” diz Dutton. “Teriam
elas assumido o aparentemente alto risco de uma guerra que poderia significar o
Armageddon por uma causa que ninguém estava convencido?” A estória de
Chamberlain é a de um homem que lutou pela paz tanto tempo quanto era possível,
e foi à guerra somente quando ela se tornou a última opção disponível. Isso não
é um mau epitáfio.
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