domingo, 27 de outubro de 2013

[POL] O Carisma subestimado de Hitler

Der Spiegel, 11/10/2013

Entrevista com o historiador Volker Ullrich

 
Spiegel: Sr. Ullrich, o quão Hitler era normal?

Ullrich: Ele não era tão louco quanto alguns estudiosos de psicologia tem nos feito acreditar, pelo menos com suas linhas simplistas de argumentação. Ele pode mesmo ter sido mais normal do que poderíamos desejar.

Spiegel: A maioria das pessoas considera Hitler um psicopata. Muitos historiadores também acreditam que alguém capaz de cometer tais crimes não pode ser normal.

Ullrich: Hitler foi, sem dúvida, excepcional em suas ações criminosas. Mesmo assim, sob muitos aspectos, ele não foi de modo algum diferente do comum. Jamais seremos capazes de compreender as coisas terríveis que aconteceram entre 1933 e 1945 se negarmos sempre que Hitler também tinha características humanas, e se falharmos em levar em conta não somente suas energias criminosas, mas também suas qualidades simpáticas. Enquanto continuarmos a vê-lo como um monstro terrível, o fascínio que ele exerceu continuará sendo um enigma.

Spiegel: Joachim Fest publicou uma biografia abrangente de Hitler em 1973 e Ian Kershaw outra, em dois volumes, começando em 1998. Qual foi a sua motivação em produzir uma terceira grande biografia?

Ullrich: Fest analisou Hitler de uma posição de ódio e aversão. Um capítulo central de seu livro é intitulado “Visão de um ignorado”. Kershaw estava basicamente interessado nas estruturas sociais que tornaram Hitler possível, enquanto que a própria pessoa permanece de algum modo em segundo plano em sua análise. Trago o homem para o plano principal. Isto cria não somente uma nova imagem de Hitler, mas uma visão mais complexa e contraditória em relação à qual estamos acostumados.

Spiegel: “Hitler, a pessoa” é o nome de um capítulo que o Sr. descreve como chave em seu livro, que será publicado esta semana. O que foi Hitler como pessoa?

Ullrich: A coisa extraordinária sobre Hitler foi o seu talento para a hipocrisia. Suas habilidades formidáveis como ator são frequentemente subestimadas. Há somente muito poucas situações onde podemos dizer que ele era verdadeiro. Por isso é tão difícil responder à pergunta como ele era como pessoa. Ele podia ser muito agradável, mesmo com pessoas que ele detestava. Por outro lado, ele também era incrivelmente frio mesmo com pessoas próximas a ele.

Spiegel: Em um ponto do livro, o Sr. escreve de um “charme cativante”. Charme não é uma qualidade geralmente associada com o criminoso do século.

Ullrich: Um bom exemplo de sua habilidade em tornar-se agradável é a sua relação com o presidente alemão Paul Von Hindenburg, que inicialmente tinha uma resistência considerável em relação ao “cabo boêmio”, como ele chamava Hitler. Contudo, poucas semanas após ser apontado chanceler, Hitler conseguiu envolver tanto Hindenburg que este último assinaria qualquer coisa que Hitler lhe pedisse. Joseph Goebbels notou frequentemente em seus diários que o ditador não somente poderia bater papo de forma agradável com seus associados, mas sabia absolutamente como ouvi-los também.

Spiegel: Por outro lado, algumas vezes este comportamento tornava-se descontrolado. O menor descuido poderia transformar-se em fúria.

Ullrich: Minha impressão é que a maioria de seus ataques de raiva eram planejados. Ele fazia isto deliberadamente para intimidar as pessoas, quando a conversa com seus adversários políticos não resultavam naquilo que ele queria. Em poucos minutos, ele poderia estar novamente se comportando com controle absoluto e exercendo o papel de anfitrião atencioso.

Spiegel: Há pouco na vida inicial de Hitler que poderia sugerir uma carreira como genocida. Ao invés de realizar o desejo de seu pai de tornar-se um burocrata, Hitler direcionou-se para a pintura e leitura. “Livros eram seu mundo,” disse um amigo de infância.

Ullrich: Hitler era um leitor ávido, uma paixão que permaneceu com ele ao longo de toda sua carreira. Os Arquivos Federais em Berlim têm recibos, mostrando títulos e preços, da livraria de Munique onde Hitler comprava seus livros. Estes mostram a imensa quantidade que ele adquiria, especialmente sobre arquitetura, apesar de biografias e trabalhos filosóficos também lhe interessarem. Hitler lia livros de maneira incrivelmente rápida, mas também seletivamente. Ele somente lia trabalhos que se ajustassem à sua visão de mundo e que poderiam ser utilizados em sua carreira política.

Spiegel: O sr. iria longe o suficiente para chamá-lo de um intelectual das artes?

Ullrich: Seu interesse nas artes era certamente excepcional. Durante uma estadia em casa em setembro de 1918, ele gastou seu tempo não em bordéis, como seus camaradas faziam, mas no Museu Island de Berlim.

Spiegel: Em outras palavras, talvez pudéssemos dizer: O mais zeloso dos artistas na política.           

Ullrich: Esta é uma boa definição. Mas Hitler nunca foi mais do que um artista mediano. Seu grande talento era no jogo da política. É fácil subestimar as qualidades excepcionais e habilidades que ele tinha para se tornar bem sucedido neste campo. No espaço de apenas três anos, ele ascendeu de um veterano de guerra desconhecido para o rei de Munique, enchendo os salões da cidade semana após semana.

Spiegel: Hitler era um lobo solitário. Ele não fumava, não bebia e eventualmente tornou-se vegetariano. O quão a excentricidade tornou-se um atrativo para as massas?

Ullrich: Munique em torno dos anos 1920 era um ambiente ideal para um agitador de extrema direita, especialmente alguém que discursasse tão acaloradamente quanto Hitler fazia. Mas ele também era um tático talentoso, manobrando seus movimentos passo a passo. Ele cercou-se de seguidores que o adoravam devotamente. E ele garantiu o apoio de patronos influentes, especialmente os Bruckmann, um casal respeitado do mundo editorial; a família Bechstein, que fabricava pianos; e, é claro, os Wagner em Bayreuth, que logo começaram a tratá-lo com alguém da família.

Spiegel: Mesmo os relatórios preliminares de Hitler como orador notavam a troca de energia entre ele e seus ouvintes. “Tive uma sensação peculiar,” uma testemunha escreveu em junho de 1919, “como se a excitação da plateia fosse o seu trabalho e, ao mesmo tempo, isso lhe desse uma voz.”

Ullrich: Para entender o poder de Hitler como orador, devemos considerar que ele não era apenas um demagogo de boteco como sempre o representamos, mas, de fato, ele elaborava seus discursos deliberadamente. Ele começava muito calmamente, na base da tentativa, quase que como sentindo o passo adiante e tentando sentir a que grau ele poderia conduzir sua plateia. Não até ele estivesse certo de sua aprovação, ele então aumentaria sua seleção de palavras e gestos, tornando-se mais agressivo. Ele continuava isto por duas ou três horas até atingir o clímax, um pico inebriante que levava lágrimas a muitos ouvintes. Quando assistimos aos vídeos de seus discursos hoje, geralmente estamos vendo somente a conclusão.

Spiegel: O escritor Klaus Mann, que observou Hitler comendo uma torta de morango na cafeteria Carlton de Munique em 1932, escreveu mais tarde, “Você quer ser ditador com este nariz? Não me faça rir.” Isto significa que deveria existir uma certa disposição para ser fascinado por Hitler?

Ullrich: Klaus Mann tinha uma repulsão motivada, instintiva e estética desde o início. Mas também há relatos de pessoas que tinham uma visão negativa de Hitler no início, mas que se converteram assim que tiveram contato com ele. Entre os pertences de Rudolf Hess, que serviu como secretário privado de Hitler a partir de 1925, encontrei cartas nas quais ele descreve para sua noiva as viagens agitadas através da Alemanha. Em uma das cartas, ele fala de uma reunião de líderes empresariais na cidade de Essen em abril de 1927. Quando Hitler entrou na sala, ele encontrou um silêncio indiferente, uma rejeição completa. Após duas horas, houve aplausos ensurdecedores. “Um ambiente como o Circo Krone (Munique),” escreveu Hess.

Spiegel: O fervor escravo dos discursos das reuniões do partido de Hitler ainda hoje chega aos nossos ouvidos. O quão era diferente sua voz na vida privada daquele que ele utilizava em público?

Ullrich: Muito poucas gravações existem na qual Hitler pode ser ouvido falando normalmente. Mas naquelas que existem, é evidente que ele possuía uma voz totalmente calma e morna. É um tom completamente diferente daquilo que ele costumava usar em suas aparições públicas*.

Spiegel: Fest foi uma vez perguntado em uma entrevista, “Hitler era antissemita?”

Ullrich: Sem dúvida. O antissemitismo – em sua forma mais radical, de fato – era o núcleo de sua personalidade. É impossível entender Hitler sem ele. Saul Friedländer o descreveu como “antissemitismo redentor”, que se encaixa muito bem. Hitler via os judeus como a personificação de tudo o que era mau, a raiz da maldade no mundo.

Spiegel: Mas este não foi o caso no início.

Ullrich: Em seu manifesto Mein Kampf, Hitler deixou claro que ele tornou-se um antissemita fanático ainda em Viena. Mas não existem provas de que ele tenha feito qualquer comentário difamatório sobre os judeus antes de se mudar para Munique. Pelo contrário, na pensão masculina onde ele viveu por três anos em Viena, ele manteve contatos amigáveis com judeus. Os negociantes que compararam suas aquarelas por um preço decente eram também judeus.

Spiegel: Ele experimentou algo como uma conversão ao antissemitismo?

Ullrich: Sabemos que Hitler tornou-se um antissemita radical durante a revolução de Munique em 1918-19, que ele presenciou e que alternou da extrema esquerda à extrema direita. A República Soviética de Munique que existiu por breve período incluía muitos judeus nas posições de liderança – Ernst Toller, Eugen Leviné e Erich Mühsam. Isto levou a um antissemitismo que se espalhou na cidade como uma epidemia**.

Spiegel: O Sr. se refere a uma carta previamente desconhecida de agosto de 1920, na qual um estudante de direito de Munique registrou as visões de Hitler após um encontro com ele. Quando o assunto era os judeus, Hitler disse, que ele acreditava que o vírus deve ser erradicado e que a existência do povo alemão estava em jogo. O quão sério Hitler era em tais afirmações naquela época?

Ullrich: O projeto político que nasceu de sua visão de mundo não consistia ainda de extermínio em massa. Apesar de toda sua retórica de destruição, “livrar-se dos judeus” nesta época significava expulsá-los da Alemanha. A chamada “Solução Final”, significando o assassinato sistemático dos judeus europeus, não fez partes dos planos até o início da Segunda Guerra Mundial.

Spiegel: Na época dos pogroms da Kristallnacht em 9 de novembro de 1938, o mais tardar, estava claro que todos aqueles que o regime considerava seus inimigos estavam agora sem direitos ou proteção. O Sr. escreve, de forma correta, que a Alemanha deixou o mundo das nações civilizadas neste ponto. Mas mesmo isso falhou em destruir a popularidade de Hitler.

Ullrich: Não é fácil dizer qual era a visão da população geral em relação aos pogroms. Baseado em fontes como os relatórios da Gestapo sobre o ambiente geral no país, tendo a compartilhar da visão de que a maioria do povo não aprovava esta violência. Curiosamente, a “Kristallnacht” não estava associada a Hitler. Ele conseguiu manter-se nos bastidores, apesar de estar mexendo os pauzinhos, com outros líderes nazistas assumindo a responsabilidade. Esta exoneração é vista nos comentários das pessoas, “se o Führer tivesse sabido disso...”.

Spiegel: Que Hitler deu considerável importância à sua imagem pode também ser vista no modo como ele tratou da questão do dinheiro. Ao mesmo tempo em que ele se apresentava como um líder humilde, em segredo ele sonegava impostos, como o Sr. escreve em seu livro.

Ullrich: Um funcionário exemplar da Receita escreveu em outubro de 1934 que Hitler devia 405.000 marcos em impostos. Qualquer obrigação em pagar estes impostos atrasados foi imediatamente abandonada, declarando Hitler isento a partir daquele momento, e o funcionário que encontrou o problema levou uma advertência.

Spiegel: Começando em 1937, havia mesmo selos mostrando sua imagem, da qual Hitler recebia direitos de imagem.

Ullrich: Hitler sempre gostou da riqueza. Não é coincidência que mesmo nos anos iniciais, ele dirigia os modelos mais novos e caros da Mercedez. Nem o seu apartamento de nove cômodos na Prinzregentenstrasse de Munique exatamente se encaixava na imagem de homem simples do povo, trabalhando até os ossos para o benefício da Alemanha. Também encontrei contas de hotéis onde Hitler ficou com sua equipe antes de 1933. Ele gastou 800 marcos por quatro dias no Kaiserhof de Berlim, por exemplo. Isto é equivalente hoje a €3,500.

Spiegel: O Sr. também dedicou um capítulo inteiro à relação de Hitler com as mulheres. O Sr. não acha isso muito insignificante, perguntando sobre a vida privada do ditador?

Ullrich: Acredito que este é um aspecto que não deveria ser omitido de uma biografia. No caso de Hitler, há também o fato de que ele não manteve uma divisão estrita entre suas esferas privada e pública, mas ao invés disso misturou estas áreas de uma forma muito estranha. Isto foi especialmente evidente em Berghof, onde os espaços privados e de trabalho eram interligados.

Spiegel: O que o Sr. acha da teoria de que Hitler era atraído sexualmente por homens?

Ullrich: Ele também supostamente tinha apenas um testículo, o que o deixava relutante em se despir na frente das mulheres. Mas você pode esquecer tudo isso. Aqui, também, Hitler não revelou muita coisa e pouco sabemos exatamente. Mas estou convencido de ele tinha uma relação muito mais íntima com sua última namorada, a assistente de fotógrafo Eva Braun, do que previamente se sabia***.

Spiegel: Kershaw expressa a teoria de Hitler encontrava seu prazer no êxtase das massas.

Ullrich: Não acredito nisso. Hitler sempre se retratou como um homem que renunciou a toda felicidade pessoal em serviço de seu povo. Não há evidência conclusiva disso, mas acredito que atrás da discrição enevoada, Hitler teve uma relação amorosa normal com Eva Braun.

Spiegel: Sem Hitler não teria havido Nacional Socialismo, mas sem as energias que o impulsionaram adiante não teria havido Hitler. Onde estas forças destrutivas teriam se reunido se esta figura chave não tivesse existido?

Ullrich: Elas teriam encontrado outra saída. Uma possibilidade teria sido um governo autoritário dirigido basicamente pelos militares. Pessoas como os chanceleres Schleicher e Papen mostraram do que seriam capazes após o golpe de 1932 na Prússia, demitindo servidores públicos republicanos e expurgando o governo. Leis antissemitas presumivelmente não teriam sido implementadas sem Hitler.

Spiegel: Sr. Ullrich, obrigado pela entrevista.    


      
Notas:

* Hitler explica a invasão da URSS com suas próprias palavras


** Qual o motivo do ódio de Hitler aos judeus?


*** Hitler e as mulheres


 
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