Entrevista
com o historiador Volker Ullrich
Ullrich: Ele não era tão
louco quanto alguns estudiosos de psicologia tem nos feito acreditar, pelo
menos com suas linhas simplistas de argumentação. Ele pode mesmo ter sido mais
normal do que poderíamos desejar.
Spiegel: A maioria das pessoas considera Hitler um
psicopata. Muitos historiadores também acreditam que alguém capaz de cometer
tais crimes não pode ser normal.
Ullrich: Hitler foi,
sem dúvida, excepcional em suas ações criminosas. Mesmo assim, sob muitos
aspectos, ele não foi de modo algum diferente do comum. Jamais seremos capazes
de compreender as coisas terríveis que aconteceram entre 1933 e 1945 se
negarmos sempre que Hitler também tinha características humanas, e se falharmos
em levar em conta não somente suas energias criminosas, mas também suas
qualidades simpáticas. Enquanto continuarmos a vê-lo como um monstro terrível,
o fascínio que ele exerceu continuará sendo um enigma.
Spiegel: Joachim Fest publicou uma biografia
abrangente de Hitler em 1973 e Ian Kershaw outra, em dois volumes, começando em
1998. Qual foi a sua motivação em produzir uma terceira grande biografia?
Ullrich: Fest analisou
Hitler de uma posição de ódio e aversão. Um capítulo central de seu livro é
intitulado “Visão de um ignorado”. Kershaw estava basicamente interessado nas
estruturas sociais que tornaram Hitler possível, enquanto que a própria pessoa
permanece de algum modo em segundo plano em sua análise. Trago o homem para o
plano principal. Isto cria não somente uma nova imagem de Hitler, mas uma visão
mais complexa e contraditória em relação à qual estamos acostumados.
Spiegel: “Hitler, a pessoa” é o nome de um capítulo
que o Sr. descreve como chave em seu livro, que será publicado esta semana. O
que foi Hitler como pessoa?
Ullrich: A coisa
extraordinária sobre Hitler foi o seu talento para a hipocrisia. Suas
habilidades formidáveis como ator são frequentemente subestimadas. Há somente
muito poucas situações onde podemos dizer que ele era verdadeiro. Por isso é
tão difícil responder à pergunta como ele era como pessoa. Ele podia ser muito
agradável, mesmo com pessoas que ele detestava. Por outro lado, ele também era
incrivelmente frio mesmo com pessoas próximas a ele.
Spiegel: Em um ponto do livro, o Sr. escreve de um “charme
cativante”. Charme não é uma qualidade geralmente associada com o criminoso do
século.
Ullrich: Um bom
exemplo de sua habilidade em tornar-se agradável é a sua relação com o
presidente alemão Paul Von Hindenburg, que inicialmente tinha uma resistência
considerável em relação ao “cabo boêmio”, como ele chamava Hitler. Contudo, poucas
semanas após ser apontado chanceler, Hitler conseguiu envolver tanto Hindenburg
que este último assinaria qualquer coisa que Hitler lhe pedisse. Joseph
Goebbels notou frequentemente em seus diários que o ditador não somente poderia
bater papo de forma agradável com seus associados, mas sabia absolutamente como
ouvi-los também.
Spiegel: Por outro lado, algumas vezes este
comportamento tornava-se descontrolado. O menor descuido poderia transformar-se
em fúria.
Ullrich: Minha
impressão é que a maioria de seus ataques de raiva eram planejados. Ele fazia
isto deliberadamente para intimidar as pessoas, quando a conversa com seus
adversários políticos não resultavam naquilo que ele queria. Em poucos minutos,
ele poderia estar novamente se comportando com controle absoluto e exercendo o
papel de anfitrião atencioso.
Spiegel: Há pouco na vida inicial de Hitler que
poderia sugerir uma carreira como genocida. Ao invés de realizar o desejo de
seu pai de tornar-se um burocrata, Hitler direcionou-se para a pintura e
leitura. “Livros eram seu mundo,” disse um amigo de infância.
Ullrich: Hitler era um
leitor ávido, uma paixão que permaneceu com ele ao longo de toda sua carreira.
Os Arquivos Federais em Berlim têm recibos, mostrando títulos e preços, da
livraria de Munique onde Hitler comprava seus livros. Estes mostram a imensa
quantidade que ele adquiria, especialmente sobre arquitetura, apesar de
biografias e trabalhos filosóficos também lhe interessarem. Hitler lia livros
de maneira incrivelmente rápida, mas também seletivamente. Ele somente lia
trabalhos que se ajustassem à sua visão de mundo e que poderiam ser utilizados
em sua carreira política.
Spiegel: O sr. iria longe o suficiente para chamá-lo
de um intelectual das artes?
Ullrich: Seu interesse
nas artes era certamente excepcional. Durante uma estadia em casa em setembro
de 1918, ele gastou seu tempo não em bordéis, como seus camaradas faziam, mas
no Museu Island de Berlim.
Spiegel: Em outras palavras, talvez pudéssemos dizer:
O mais zeloso dos artistas na política.
Ullrich: Esta é uma
boa definição. Mas Hitler nunca foi mais do que um artista mediano. Seu grande
talento era no jogo da política. É fácil subestimar as qualidades excepcionais
e habilidades que ele tinha para se tornar bem sucedido neste campo. No espaço
de apenas três anos, ele ascendeu de um veterano de guerra desconhecido para o
rei de Munique, enchendo os salões da cidade semana após semana.
Spiegel: Hitler era um lobo solitário. Ele não
fumava, não bebia e eventualmente tornou-se vegetariano. O quão a
excentricidade tornou-se um atrativo para as massas?
Ullrich: Munique em
torno dos anos 1920 era um ambiente ideal para um agitador de extrema direita,
especialmente alguém que discursasse tão acaloradamente quanto Hitler fazia.
Mas ele também era um tático talentoso, manobrando seus movimentos passo a
passo. Ele cercou-se de seguidores que o adoravam devotamente. E ele garantiu o
apoio de patronos influentes, especialmente os Bruckmann, um casal respeitado
do mundo editorial; a família Bechstein, que fabricava pianos; e, é claro, os
Wagner em Bayreuth, que logo começaram a tratá-lo com alguém da família.
Spiegel: Mesmo os relatórios preliminares de Hitler
como orador notavam a troca de energia entre ele e seus ouvintes. “Tive uma
sensação peculiar,” uma testemunha escreveu em junho de 1919, “como se a
excitação da plateia fosse o seu trabalho e, ao mesmo tempo, isso lhe desse uma
voz.”
Ullrich: Para entender
o poder de Hitler como orador, devemos considerar que ele não era apenas um
demagogo de boteco como sempre o representamos, mas, de fato, ele elaborava
seus discursos deliberadamente. Ele começava muito calmamente, na base da
tentativa, quase que como sentindo o passo adiante e tentando sentir a que grau
ele poderia conduzir sua plateia. Não até ele estivesse certo de sua aprovação,
ele então aumentaria sua seleção de palavras e gestos, tornando-se mais
agressivo. Ele continuava isto por duas ou três horas até atingir o clímax, um
pico inebriante que levava lágrimas a muitos ouvintes. Quando assistimos aos
vídeos de seus discursos hoje, geralmente estamos vendo somente a conclusão.
Spiegel: O escritor Klaus Mann, que observou Hitler
comendo uma torta de morango na cafeteria Carlton de Munique em 1932, escreveu
mais tarde, “Você quer ser ditador com este nariz? Não me faça rir.” Isto
significa que deveria existir uma certa disposição para ser fascinado por
Hitler?
Ullrich: Klaus Mann
tinha uma repulsão motivada, instintiva e estética desde o início. Mas também
há relatos de pessoas que tinham uma visão negativa de Hitler no início, mas
que se converteram assim que tiveram contato com ele. Entre os pertences de
Rudolf Hess, que serviu como secretário privado de Hitler a partir de 1925,
encontrei cartas nas quais ele descreve para sua noiva as viagens agitadas
através da Alemanha. Em uma das cartas, ele fala de uma reunião de líderes empresariais
na cidade de Essen em abril de 1927. Quando Hitler entrou na sala, ele
encontrou um silêncio indiferente, uma rejeição completa. Após duas horas,
houve aplausos ensurdecedores. “Um ambiente como o Circo Krone (Munique),”
escreveu Hess.
Spiegel: O fervor escravo dos discursos das reuniões
do partido de Hitler ainda hoje chega aos nossos ouvidos. O quão era diferente
sua voz na vida privada daquele que ele utilizava em público?
Ullrich: Muito poucas
gravações existem na qual Hitler pode ser ouvido falando normalmente. Mas
naquelas que existem, é evidente que ele possuía uma voz totalmente calma e
morna. É um tom completamente diferente daquilo que ele costumava usar em suas
aparições públicas*.
Spiegel: Fest foi uma vez perguntado em uma entrevista,
“Hitler era antissemita?”
Ullrich: Sem dúvida. O
antissemitismo – em sua forma mais radical, de fato – era o núcleo de sua
personalidade. É impossível entender Hitler sem ele. Saul Friedländer o
descreveu como “antissemitismo redentor”, que se encaixa muito bem. Hitler via
os judeus como a personificação de tudo o que era mau, a raiz da maldade no
mundo.
Spiegel: Mas este não foi o caso no início.
Ullrich: Em seu
manifesto Mein Kampf, Hitler deixou claro que ele tornou-se um antissemita
fanático ainda em Viena. Mas não existem provas de que ele tenha feito qualquer
comentário difamatório sobre os judeus antes de se mudar para Munique. Pelo
contrário, na pensão masculina onde ele viveu por três anos em Viena, ele
manteve contatos amigáveis com judeus. Os negociantes que compararam suas
aquarelas por um preço decente eram também judeus.
Spiegel: Ele experimentou algo como uma conversão ao
antissemitismo?
Ullrich: Sabemos que
Hitler tornou-se um antissemita radical durante a revolução de Munique em
1918-19, que ele presenciou e que alternou da extrema esquerda à extrema
direita. A República Soviética de Munique que existiu por breve período incluía
muitos judeus nas posições de liderança – Ernst Toller, Eugen Leviné e Erich
Mühsam. Isto levou a um antissemitismo que se espalhou na cidade como uma
epidemia**.
Spiegel: O Sr. se refere a uma carta previamente
desconhecida de agosto de 1920, na qual um estudante de direito de Munique
registrou as visões de Hitler após um encontro com ele. Quando o assunto era os
judeus, Hitler disse, que ele acreditava que o vírus deve ser erradicado e que
a existência do povo alemão estava em jogo. O quão sério Hitler era em tais
afirmações naquela época?
Ullrich: O projeto
político que nasceu de sua visão de mundo não consistia ainda de extermínio em
massa. Apesar de toda sua retórica de destruição, “livrar-se dos judeus” nesta
época significava expulsá-los da Alemanha. A chamada “Solução Final”,
significando o assassinato sistemático dos judeus europeus, não fez partes dos
planos até o início da Segunda Guerra Mundial.
Spiegel: Na época dos pogroms da Kristallnacht em 9
de novembro de 1938, o mais tardar, estava claro que todos aqueles que o regime
considerava seus inimigos estavam agora sem direitos ou proteção. O Sr. escreve,
de forma correta, que a Alemanha deixou o mundo das nações civilizadas neste
ponto. Mas mesmo isso falhou em destruir a popularidade de Hitler.
Ullrich: Não é fácil
dizer qual era a visão da população geral em relação aos pogroms. Baseado em
fontes como os relatórios da Gestapo sobre o ambiente geral no país, tendo a
compartilhar da visão de que a maioria do povo não aprovava esta violência.
Curiosamente, a “Kristallnacht” não estava associada a Hitler. Ele conseguiu
manter-se nos bastidores, apesar de estar mexendo os pauzinhos, com outros
líderes nazistas assumindo a responsabilidade. Esta exoneração é vista nos
comentários das pessoas, “se o Führer tivesse sabido disso...”.
Spiegel: Que Hitler deu considerável importância à
sua imagem pode também ser vista no modo como ele tratou da questão do
dinheiro. Ao mesmo tempo em que ele se apresentava como um líder humilde, em
segredo ele sonegava impostos, como o Sr. escreve em seu livro.
Ullrich: Um
funcionário exemplar da Receita escreveu em outubro de 1934 que Hitler devia
405.000 marcos em impostos. Qualquer obrigação em pagar estes impostos
atrasados foi imediatamente abandonada, declarando Hitler isento a partir
daquele momento, e o funcionário que encontrou o problema levou uma
advertência.
Spiegel: Começando em 1937, havia mesmo selos
mostrando sua imagem, da qual Hitler recebia direitos de imagem.
Ullrich: Hitler sempre
gostou da riqueza. Não é coincidência que mesmo nos anos iniciais, ele dirigia
os modelos mais novos e caros da Mercedez. Nem o seu apartamento de nove
cômodos na Prinzregentenstrasse de Munique exatamente se encaixava na imagem de
homem simples do povo, trabalhando até os ossos para o benefício da Alemanha.
Também encontrei contas de hotéis onde Hitler ficou com sua equipe antes de
1933. Ele gastou 800 marcos por quatro dias no Kaiserhof de Berlim, por
exemplo. Isto é equivalente hoje a €3,500.
Spiegel: O Sr. também dedicou um capítulo inteiro à
relação de Hitler com as mulheres. O Sr. não acha isso muito insignificante,
perguntando sobre a vida privada do ditador?
Ullrich:
Acredito que este é um aspecto que não deveria ser omitido de uma biografia. No
caso de Hitler, há também o fato de que ele não manteve uma divisão estrita
entre suas esferas privada e pública, mas ao invés disso misturou estas áreas
de uma forma muito estranha. Isto foi especialmente evidente em Berghof, onde
os espaços privados e de trabalho eram interligados.
Spiegel: O que o Sr. acha da teoria de que
Hitler era atraído sexualmente por homens?
Ullrich: Ele
também supostamente tinha apenas um testículo, o que o deixava relutante em se
despir na frente das mulheres. Mas você pode esquecer tudo isso. Aqui, também,
Hitler não revelou muita coisa e pouco sabemos exatamente. Mas estou convencido
de ele tinha uma relação muito mais íntima com sua última namorada, a
assistente de fotógrafo Eva Braun, do que previamente se sabia***.
Spiegel: Kershaw expressa a teoria de Hitler
encontrava seu prazer no êxtase das massas.
Ullrich:
Não acredito nisso. Hitler sempre se retratou como um homem que renunciou a
toda felicidade pessoal em serviço de seu povo. Não há evidência conclusiva
disso, mas acredito que atrás da discrição enevoada, Hitler teve uma relação
amorosa normal com Eva Braun.
Spiegel: Sem Hitler não teria havido Nacional
Socialismo, mas sem as energias que o impulsionaram adiante não teria havido
Hitler. Onde estas forças destrutivas teriam se reunido se esta figura chave
não tivesse existido?
Ullrich:
Elas teriam encontrado outra saída. Uma possibilidade teria sido um governo
autoritário dirigido basicamente pelos militares. Pessoas como os chanceleres
Schleicher e Papen mostraram do que seriam capazes após o golpe de 1932 na
Prússia, demitindo servidores públicos republicanos e expurgando o governo. Leis
antissemitas presumivelmente não teriam sido implementadas sem Hitler.
Spiegel: Sr. Ullrich, obrigado pela entrevista.
*
Hitler explica a invasão da URSS com
suas próprias palavras
**
Qual o motivo do ódio de Hitler aos
judeus?
***
Hitler e as mulheres
Hitler: Além da Maldade e da Tirania
A Formação do Pensamento Político de
Adolf Hitler
A Biblioteca esquecida de Hitler
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