Setenta
anos atrás, em 9 de agosto de 1942, o stadium tornou-se o local de um dos jogos
de futebol mais infames e disputados, o chamado “Jogo da Morte”. Com Kiev sob
ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial, um grupo de jogadores
ucranianos derrotou um time militar de alemães formados possivelmente por
pessoal da artilharia, talvez de unidades da Luftwaffe.
De
acordo com a lenda, os alemães alertaram o time local de antemão ou na véspera
do jogo que seria melhor perder a partida, e quando os ucranianos ignoraram a
ameaça e venceram, os principais jogadores do time foram fuzilados.
O
placar final foi 5 a
3. Isto parece todo mundo concordar. E quatro dos cinco jogadores ucranianos
morreram nos próximos seis meses após o jogo, de acordo com vários relatos. Eles
foram mortos porque ganharam o jogo? Acredita-se que todos os participantes
estejam mortos. A verdade permanece elusiva. Um jogador que
popularizou a lenda parece ter contado tantas versões da estória quanto foram
os gols da partida, tanto dando um brilho no mito quanto desacreditando-o.
Aquele
jogo antigo está ganhando atenção renovada à medida que a Ucrânia serve como
co-participante da Euro Copa 2012.
A partida cresceu além de uma disputa esportiva em
direção de um mito e folclore, imortalizado em monumentos nos arredores de Kiev
e em artigos, livros, documentários e filmes, mesmo uma versão estrelada por
Sylvester Stallone. O último filme, chamado Partida e produzido pelos russos,
estreou antes da Copa e recebeu críticas por retratar os ucranianos como
simpatizantes nazistas.
Alguns
acreditam que o jogo de 1942 foi, ou deve ter sido, um jogo fatal. Muitos
pesquisadores e jornalistas descartam a lenda como propaganda da era soviética
e tem resistido a refutá-la. Outros ainda parecem despreocupados com a verdade.
Eles abraçam o mito como um símbolo duradouro do patriotismo e desafio
ucranianos em um país onde entre 8 e 10 milhões de cidadãos morreram durante a
guerra, um país onde rações mínimas incluíam cascas de árvores e estrume de
vaca, um país cujo museu nacional da Segunda Guerra Mundial mostra uma máquina
usada pelos nazistas para transformar ossos humanos em fertilizante.
“Os
fatos dizem que a partida realmente aconteceu, mas não foi um jogo da morte,”
diz Marina Shevchenko, uma historiadora que trabalha no Museu Nacional de
História da Grande Guerra Patriótica em Kiev, como a Segunda Guerra Mundial era
conhecida na antiga União Soviética. “As
pessoas querem suas lendas, como
Robin Hood.”
Se
o jogo e sua lenda não existiram, disse Alexander Doyzhenko, um diretor
cinematográfico da primeira metade do século XX, “Então teríamos que
inventá-lo.”
Sob Ocupação
Em
19 de setembro de 1941, os nazistas ocuparam Kiev. Dias depois, mais de 33.000
judeus foram mortos em Babi
Yar , uma planície nas redondezas da dilacerada capital. Como
resultado da invasão alemã, a temporada de futebol ucraniana foi cancelada. Mas
em junho de 1942, um tipo de torneio de futebol foi aparentemente organizado,
recebendo dois times ucranianos e representantes da Alemanha, Hungria e
Romênia.
O
melhor time, F.C. Start, estava invicto. Ele era composto de padeiros, a
maioria dos quais haviam jogado ou deveriam jogar pelo poderoso clube de Kiev
Dynamo, que mais tarde venceria 13 campeonatos da liga soviética. Como diz a
estória, o proprietário da padaria, também descrita como uma fábrica de pães,
era um grande fã do Dynamo. Ele pensou na idéia de formar um time amador,
fornecendo rações extras de comida aos jogadores e tempo para treinar.
Em
6 de agosto de 1942, o Start é dito ter vencido um time alemão Flakelf por 5 a 1. Flankelf traduzido para
Flak 11 sugere que o time alemão era composto principalmente por aqueles que
estavam envolvidos com canhões antiaéreos ao redor de Kiev. Uma revanche contra
um time alemão reforçado foi realizada no final da tarde três dias depois. Uma
cópia do pôster anunciando o jogo de 9 de agosto está exposto no museu da
Segunda Guerra Mundial.
Cerca
de 2.000 espectadores, pagando cinco rublos pelo bilhete, estiveram presentes
na revanche no Start Stadium, então conhecido como Estádio Zênite. Segundo
alguns relatos, o estádio estava repleto de soldados, oficiais da SS e cães
policiais, apesar de outros relatos dispensarem isto. Makar Gomcharenko, uma
estrela do Start, disse em 1985 num relato oral que algumas pessoas
desconhecidas alertaram que poderia ser arriscado jogar contra e derrotar os
alemães em uma revanche.
“Todos
nos disseram: ‘O que vocês estão fazendo? É um perigo real,’” disse
Goncharenko, registrado pelos funcionários do museu, que também traduziu a
entrevista do russo para este artigo.
Os
jogadores do Start escutaram, mas decidiram finalmente continuar com o jogo.
“Esporte
é esporte,” disse Goncharenko. “Não queríamos perder.”
Ele
também disse que um oficial da Gestapo visitou o time antes da partida,
apresentando-se como árbitro e disse aos jogadores que eles deveriam estender
seus braços direitos e fazer a saudação nazista no campo antes do jogo. Os
jogadores concordaram sem a intenção de cumprir, disse Goncharenko. No final,
eles recusaram a ordem, ele disse, e ao invés disso deram um popular grito
esportivo, “Preparação, cultura, hurra!”
De
acordo com este relato de 1985, o jogo começou brutalmente e o artilheiro do
Start, Nikolai Trusevich, foi derrubado. Água foi jogada sobre ele para
reacordá-lo, mas enquanto ele continuou desmaiado, os alemães fizeram três
gols. Durante o intervalo, o Start decidiu jogar por um empate, acreditando que
o árbitro nunca permitiria os ucranianos vencerem. Mas os instintos
competitivos venceram. E após o jogo ficar empatado em 3 a 3, Goncharenko disse que
ele marcou os dois gols finais para dar a vitória ao Start por 5 a 3.
Em
uma entrevista de 1992 a
uma estação de rádio de Kiev, Goncharenko deu outra versão da partida, que é o
relato mais romantizado. Nesta versão, o Start obteve inspiração de seu
artilheiro atingido na cabeça e ficou abobado, ganhando por um placar de 3 a 1 até o intervalo. É neste
ponto que o oficial da SS entrou no vestiário e cumprimentou a qualidade dos
jogadores. Mas, de uma forma polida e resoluta, ele também disse que eles
deveriam saber das conseqüências da vitória, dando a entender que eles deveriam
entregar o jogo para o time Flakelf.
Tal
alerta parece plausível, diz Andy Dougan, um professor no Conservatório Real da
Escócia, uma universidade de artes em Glasgow, e autor de um livro sobre o
jogo, Dynamo: Triunfo e Tragédia na Kiev
ocupada pelos Nazistas.
Os
alemães naquela altura devem ter se arrependido da revanche, diz Dougan.
“Tornou-se
um pesadelo porque eles deram ao povo algo para se reunir,” disse Dougan. “Estou
muito certo que haveria um alerta, que eles tinham tido sua diversão.”
Mesmo
assim, o Start não sucumbiu. O relato de uma testemunha no livro de Dougan
disse que um jogador ucraniano, Alex Klimenko, driblou os alemães no final,
então na cara do gol chutou a bola para fora como um ato final de humilhação
aos ocupantes.
O
mito mais extremo diz que os jogadores do Start foram fuzilados imediatamente
após a partida, alinhados no campo ou colocados contra uma parede. Isto
certamente não é verdade. Goncharenko disse em 1985 que os jogadores do Start
estavam “um pouco nervosos,” mas tomaram banho e foram para casa.
De
acordo com uma fotografia altamente divulgada, os jogadores de ambos os times
ficaram juntos para uma foto do pós-jogo, alguns deles sorrindo. (Apesar de,
como muito deste conto, mesmo a fotografia ser questionada; alguns acreditam
que ela foi feita antes do jogo ou em outra partida no mês anterior.)
Também
não é verdade que os jogadores do Start fugiram em massa, como mostrado no
filme Vitória de 1981, refilmado na
Alemanha e França com prisioneiros de guerra aliados e estrelando Stallone,
Michael Caine, Pelé e uma trupe de jogadores profissionais.
“Hollywood,”
disse rindo Sergey Mikhaylenko, presidente do fã Clube do Dynamo, “Final
feliz.”
Conseqüências
O
que de fato aconteceu após a partida permanece tão obscuro em muitos aspectos
quano o que aconteceu durante ela.
Segundo
muitos relatos, o F.C. Start jogou novamente em 16 de agosto, vencendo outro
time ucraniano, o Rukh, por 8 a
0. Mas em sua história oral de 1985, Goncharenko disse que os jogadores do
Start foram presos pela Gestapo na padaria que eles trabalhavam em 10 de
agosto, no dia seguinte à revanche contra o time Flakelf. Os agentes da Gestapo
carregavam um pôster ou folheto com os nomes
de outros jogadores do Dynamo – o time pré-ocupação para muitos atletas
do Start – e queriam saber onde eles estavam, disse Goncharenko.
Ele
não mencionou, mas o Dynamo era mantido pela polícia. Talvez a Gestapo
suspeitasse que os jogadores eram membros do NKVD, a polícia secreta precursora
da KGB. Os jogadores foram separados e torturados por mais de três semanas,
disse Goncharenko, antes de serem levados para o campo de concentração de
Syrets, no limite de Kiev e próximo à planície de Babi Yar.
Outros
relatos dizem que os jogadores do Start foram presos em 18 de agosto, logo após
a partida contra o Rukh. Há várias razões possíveis para sua prisão: eles podem
ter irritado o novo regime de ocupação em Kiev e destruído a ideia da
superioridade alemã vencendo todas as partidas. Eles podem ter sido traídos por
Georgi Shvetsov, o dono do Rukh, que teria dito a algumas pessoas estar ciumento
do sucesso do Start. Eles podem ter sido suspeitos de ter ligações com o NKVD.
Um jogador, Mykola Korotkikh, é dito ter sido morto várias semanas após a
partida por ser suspeito de servir na força de segurança de Stalin. Alguns
relatos dizem que uma fotografia dele vestindo um uniforme do NKVD foi
encontrada e ele foi dedurado sob coação de sua irmã.
Seis
meses e meio após o jogo, em 24 de fevereiro de 1943, três jogadores do Start foram
fuzilados, conforme relato: Trusevich, Klimenko e Ivan Kuzmenko. Em 23 de
fevereiro, uma fábrica onde os alemães faziam a manutenção de lagartas
motorizadas é dita ter sido sabotada em um incêndio provocado por partisans. Na mesma época, uma brigada de trabalhadores
do campo de Syrets também foi acusada de estar tentando contrabandear salsichas;
um dos trabalhadores deve ter tentado atacar o comandante do campo ou seu
pastor alemão no momento da prisão. Em retaliação, os alemães fuzilaram os três
prisioneiros da brigada.
Dougan,
o autor escocês disse acreditar que os jogadores do Start foram mortos
deliberadamente. “Pode bem ter sido uma chance real, mas estes caras não eram
apenas três jogadores, mas três dos melhores,” ele disse. “Acho que as chances
são muito grandes.”
Promotores
em Hamburgo, Alemanha, investigaram o episódio. Mas eles encerraram o caso em
2005, dizendo que não encontraram nenhuma prova de que os jogadores do Start foram
assassinados por derrotar o time do Flakelf naquele final de tarde em 1942.
Uma Lenda
Distorcida
Este
fato dificilmente foi mantido sem ser embrulhado com lenda. No final de 1943 e
no início de 1944, uma vez Kiev libertada pelos soviéticos, artigos de jornal
começaram a aparecer descrevendo detalhes que se encaixariam num mito
contraditório conhecido como Jogo da Morte.
Inicialmente,
as autoridades soviéticas estavam hesitantes em promover a lenda, preocupadas
de que os jogadores fossem colaboracionistas nazistas por terem participado de
uma série de jogos em 1942, de acordo com Tetiana Bykova, uma historiadora da
Academia de Ciências da Ucrânia que estudou o chamado Jogo da Morte.
Mas
artigos foram publicados e “o gênio foi liberado da garrafa,” diz Bykova. “Se
você não pode apagar a estória, então você deve contá-la de modo que lhe traga
a maior vantagem política possível.”
A
solução soviética foi eliminar os outros jogos e embelezar a ideia da partida
mortal, diz Bykova. Começando no início dos anos 1950, com a publicação de um
artigo de jornal de Kiev e um livro chamado O Duelo Final e filmes subsequentes
produzidos pela União Soviética e Hungria, a partida serviu tanto como uma
fonte do orgulho ucraniano quanto como propaganda soviética.
“É
como O Homem que matou o facínora*,”
diz Dougan. “Quando a lenda é melhor do que a verdade, publique a lenda.”
Inicialmente,
os jogadores do Start estavam relutantes em discutir o jogo. Uma boa razão para
isso era o medo, como disseram Dougan e outros. Medo de serem vistos como
colaboradores nazistas. Medo de estarem ressentidos por ter vivido sob
condições menos duras do que os outros e por terem escapado do serviço militar.
Medo de contradizer um conto de heroísmo soviético contra as atrocidades
nazistas.
Isto
ajuda a explicar por que Goncharenko deu versões conflitantes ao longo dos
anos. E por que, em seu relato de 1985, ele ter dito que antes de Trusevich, o
goleiro, ter sido fuzilado após seis meses da partida, suas palavras finais
foram, “Vida longa a Stalin, vida longa ao esporte soviético!” De acordo com
Dougan, Goncharenko “estava muito assustado.”
Quando
a União Soviética caiu, relatos mais prosaicos da partida foram dados. Georgi
Kuzmin, um jornalista ucraniano que cobriu o futebol por mais de 40 anos, disse
que Goncharenko lhe contou em 1991 que ninguém pediu para os jogadores do Start
não jogarem e que Goncharenko não acreditava que os jogadores foram
deliberadamente assassinados por terem ganho a partida. Goncharenko deu um
relato semelhante a um jornal ucraniano em 1996, dizendo que foi um jogo
normal. Ele faleceu naquele ano.
Quando
os antigos jogadores do Start receberam medalhas cerca de duas décadas após a
partida, um deles, Mikhail Putisin, recusou a sua, dizendo mais tarde que ele
não participaria de uma mentira, diz Kuzmin.
Bykova,
a historiadora, disse que a evidência é que os alemães jogaram limpo e não
machucaram o goleiro, pelo menos não propositalmente. Foram os ucranianos que
se tornaram mais agressivos enquanto o jogo corria, ela disse. Ela também
acredita que um relato mais honesto do jogo poderia ter se tornado mais
poderoso do que o mito.
Hoje,
o Start Stadium promove os jogos de verão para equipes amadoras e
semiprofissionais, cujos jogadores nem sempre esperam até o apito final para
fortalecer seu corpo com cerveja e cigarros. As crianças andam de bicicleta e patins
em uma pista asfaltada em torno do campo bem aparado. E a estátua atrás das arquibancadas
mal cuidadas perpetua a lenda do Jogo da Morte.
“Era
propaganda,” disse Kuzmin, cuja história do futebol ucraniano, O que aconteceu e o que não aconteceu,
foi publicada em 2010. “Os soviéticos poderiam mostrar que as pessoas poderiam
morrer pelo bem da ideologia soviética. E as pessoas de Kiev gostavam da
estória. É um bom conto de fadas. Mas todos devem saber a verdade.”
Para
alguns, a verdade não é tudo.
No
estádio do Dynamo em Kiev, há um monumento honrando os quatro jogadores do
Start que morreram nas semanas e meses seguintes à partida de 1942. Os
jogadores estão nus, segurando as mãos, fisicamente fortes. Viagens de turismo
ao estádio e ao monumento não são incomodadas pelo debate. Ambos são
celebrações, não investigações.
“Nenhum
documento pode provar qualquer destas coisas,” disse Kirill Boyko, chefe do fã
clube do Dynamo. “Somos patriotas pelo nosso país e time. Acreditamos na lenda.”
Nota:
* "The Man Who Shot Liberty Valance"
(título original), 1962. Um senador que tornou-se famoso por matar um fora-da-lei
conhecido retorna à cidade para o funeral de um velho amigo e conta a verdade
sobre o que aconteceu.
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