quarta-feira, 16 de outubro de 2013

[SGM] Partida de Futebol da SGM sobrevive ao tempo

The New York Times, 23/06/2012

 
Há poucas coisas impressionantes sobre o Start Stadium exceto suas ruínas. Arquibancadas de madeira no setor da torcida, como dentes mal cuidados, estão em sua maioria faltando ou quebradas. Atrás da pequena área das cadeiras, porém, uma coluna robusta ascende e apóia a estátua. Ela mostra um homem nu, musculoso, heroicamente chutando uma bola no bico de uma águia derrubada.

Setenta anos atrás, em 9 de agosto de 1942, o stadium tornou-se o local de um dos jogos de futebol mais infames e disputados, o chamado “Jogo da Morte”. Com Kiev sob ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial, um grupo de jogadores ucranianos derrotou um time militar de alemães formados possivelmente por pessoal da artilharia, talvez de unidades da Luftwaffe.

De acordo com a lenda, os alemães alertaram o time local de antemão ou na véspera do jogo que seria melhor perder a partida, e quando os ucranianos ignoraram a ameaça e venceram, os principais jogadores do time foram fuzilados.

O placar final foi 5 a 3. Isto parece todo mundo concordar. E quatro dos cinco jogadores ucranianos morreram nos próximos seis meses após o jogo, de acordo com vários relatos. Eles foram mortos porque ganharam o jogo? Acredita-se que todos os participantes estejam mortos. A verdade permanece elusiva. Um jogador que popularizou a lenda parece ter contado tantas versões da estória quanto foram os gols da partida, tanto dando um brilho no mito quanto desacreditando-o.

Aquele jogo antigo está ganhando atenção renovada à medida que a Ucrânia serve como co-participante da Euro Copa 2012. A partida cresceu além de uma disputa esportiva em direção de um mito e folclore, imortalizado em monumentos nos arredores de Kiev e em artigos, livros, documentários e filmes, mesmo uma versão estrelada por Sylvester Stallone. O último filme, chamado Partida e produzido pelos russos, estreou antes da Copa e recebeu críticas por retratar os ucranianos como simpatizantes nazistas.

Alguns acreditam que o jogo de 1942 foi, ou deve ter sido, um jogo fatal. Muitos pesquisadores e jornalistas descartam a lenda como propaganda da era soviética e tem resistido a refutá-la. Outros ainda parecem despreocupados com a verdade. Eles abraçam o mito como um símbolo duradouro do patriotismo e desafio ucranianos em um país onde entre 8 e 10 milhões de cidadãos morreram durante a guerra, um país onde rações mínimas incluíam cascas de árvores e estrume de vaca, um país cujo museu nacional da Segunda Guerra Mundial mostra uma máquina usada pelos nazistas para transformar ossos humanos em fertilizante.

“Os fatos dizem que a partida realmente aconteceu, mas não foi um jogo da morte,” diz Marina Shevchenko, uma historiadora que trabalha no Museu Nacional de História da Grande Guerra Patriótica em Kiev, como a Segunda Guerra Mundial era conhecida na antiga União Soviética. “As pessoas querem suas lendas, como Robin Hood.”

Se o jogo e sua lenda não existiram, disse Alexander Doyzhenko, um diretor cinematográfico da primeira metade do século XX, “Então teríamos que inventá-lo.”

Sob Ocupação

Em 19 de setembro de 1941, os nazistas ocuparam Kiev. Dias depois, mais de 33.000 judeus foram mortos em Babi Yar, uma planície nas redondezas da dilacerada capital. Como resultado da invasão alemã, a temporada de futebol ucraniana foi cancelada. Mas em junho de 1942, um tipo de torneio de futebol foi aparentemente organizado, recebendo dois times ucranianos e representantes da Alemanha, Hungria e Romênia.

O melhor time, F.C. Start, estava invicto. Ele era composto de padeiros, a maioria dos quais haviam jogado ou deveriam jogar pelo poderoso clube de Kiev Dynamo, que mais tarde venceria 13 campeonatos da liga soviética. Como diz a estória, o proprietário da padaria, também descrita como uma fábrica de pães, era um grande fã do Dynamo. Ele pensou na idéia de formar um time amador, fornecendo rações extras de comida aos jogadores e tempo para treinar.

Em 6 de agosto de 1942, o Start é dito ter vencido um time alemão Flakelf por 5 a 1. Flankelf traduzido para Flak 11 sugere que o time alemão era composto principalmente por aqueles que estavam envolvidos com canhões antiaéreos ao redor de Kiev. Uma revanche contra um time alemão reforçado foi realizada no final da tarde três dias depois. Uma cópia do pôster anunciando o jogo de 9 de agosto está exposto no museu da Segunda Guerra Mundial.

Cerca de 2.000 espectadores, pagando cinco rublos pelo bilhete, estiveram presentes na revanche no Start Stadium, então conhecido como Estádio Zênite. Segundo alguns relatos, o estádio estava repleto de soldados, oficiais da SS e cães policiais, apesar de outros relatos dispensarem isto. Makar Gomcharenko, uma estrela do Start, disse em 1985 num relato oral que algumas pessoas desconhecidas alertaram que poderia ser arriscado jogar contra e derrotar os alemães em uma revanche.

“Todos nos disseram: ‘O que vocês estão fazendo? É um perigo real,’” disse Goncharenko, registrado pelos funcionários do museu, que também traduziu a entrevista do russo para este artigo.

Os jogadores do Start escutaram, mas decidiram finalmente continuar com o jogo.

“Esporte é esporte,” disse Goncharenko. “Não queríamos perder.”

Ele também disse que um oficial da Gestapo visitou o time antes da partida, apresentando-se como árbitro e disse aos jogadores que eles deveriam estender seus braços direitos e fazer a saudação nazista no campo antes do jogo. Os jogadores concordaram sem a intenção de cumprir, disse Goncharenko. No final, eles recusaram a ordem, ele disse, e ao invés disso deram um popular grito esportivo, “Preparação, cultura, hurra!”

De acordo com este relato de 1985, o jogo começou brutalmente e o artilheiro do Start, Nikolai Trusevich, foi derrubado. Água foi jogada sobre ele para reacordá-lo, mas enquanto ele continuou desmaiado, os alemães fizeram três gols. Durante o intervalo, o Start decidiu jogar por um empate, acreditando que o árbitro nunca permitiria os ucranianos vencerem. Mas os instintos competitivos venceram. E após o jogo ficar empatado em 3 a 3, Goncharenko disse que ele marcou os dois gols finais para dar a vitória ao Start por 5 a 3.

Em uma entrevista de 1992 a uma estação de rádio de Kiev, Goncharenko deu outra versão da partida, que é o relato mais romantizado. Nesta versão, o Start obteve inspiração de seu artilheiro atingido na cabeça e ficou abobado, ganhando por um placar de 3 a 1 até o intervalo. É neste ponto que o oficial da SS entrou no vestiário e cumprimentou a qualidade dos jogadores. Mas, de uma forma polida e resoluta, ele também disse que eles deveriam saber das conseqüências da vitória, dando a entender que eles deveriam entregar o jogo para o time Flakelf.

Tal alerta parece plausível, diz Andy Dougan, um professor no Conservatório Real da Escócia, uma universidade de artes em Glasgow, e autor de um livro sobre o jogo, Dynamo: Triunfo e Tragédia na Kiev ocupada pelos Nazistas.

Os alemães naquela altura devem ter se arrependido da revanche, diz Dougan.

“Tornou-se um pesadelo porque eles deram ao povo algo para se reunir,” disse Dougan. “Estou muito certo que haveria um alerta, que eles tinham tido sua diversão.”

Mesmo assim, o Start não sucumbiu. O relato de uma testemunha no livro de Dougan disse que um jogador ucraniano, Alex Klimenko, driblou os alemães no final, então na cara do gol chutou a bola para fora como um ato final de humilhação aos ocupantes.

O mito mais extremo diz que os jogadores do Start foram fuzilados imediatamente após a partida, alinhados no campo ou colocados contra uma parede. Isto certamente não é verdade. Goncharenko disse em 1985 que os jogadores do Start estavam “um pouco nervosos,” mas tomaram banho e foram para casa.

De acordo com uma fotografia altamente divulgada, os jogadores de ambos os times ficaram juntos para uma foto do pós-jogo, alguns deles sorrindo. (Apesar de, como muito deste conto, mesmo a fotografia ser questionada; alguns acreditam que ela foi feita antes do jogo ou em outra partida no mês anterior.)

 
Também não é verdade que os jogadores do Start fugiram em massa, como mostrado no filme Vitória de 1981, refilmado na Alemanha e França com prisioneiros de guerra aliados e estrelando Stallone, Michael Caine, Pelé e uma trupe de jogadores profissionais.

“Hollywood,” disse rindo Sergey Mikhaylenko, presidente do fã Clube do Dynamo, “Final feliz.”

Conseqüências

O que de fato aconteceu após a partida permanece tão obscuro em muitos aspectos quano o que aconteceu durante ela.

Segundo muitos relatos, o F.C. Start jogou novamente em 16 de agosto, vencendo outro time ucraniano, o Rukh, por 8 a 0. Mas em sua história oral de 1985, Goncharenko disse que os jogadores do Start foram presos pela Gestapo na padaria que eles trabalhavam em 10 de agosto, no dia seguinte à revanche contra o time Flakelf. Os agentes da Gestapo carregavam um pôster ou folheto com os nomes  de outros jogadores do Dynamo – o time pré-ocupação para muitos atletas do Start – e queriam saber onde eles estavam, disse Goncharenko.

Ele não mencionou, mas o Dynamo era mantido pela polícia. Talvez a Gestapo suspeitasse que os jogadores eram membros do NKVD, a polícia secreta precursora da KGB. Os jogadores foram separados e torturados por mais de três semanas, disse Goncharenko, antes de serem levados para o campo de concentração de Syrets, no limite de Kiev e próximo à planície de Babi Yar.

Outros relatos dizem que os jogadores do Start foram presos em 18 de agosto, logo após a partida contra o Rukh. Há várias razões possíveis para sua prisão: eles podem ter irritado o novo regime de ocupação em Kiev e destruído a ideia da superioridade alemã vencendo todas as partidas. Eles podem ter sido traídos por Georgi Shvetsov, o dono do Rukh, que teria dito a algumas pessoas estar ciumento do sucesso do Start. Eles podem ter sido suspeitos de ter ligações com o NKVD. Um jogador, Mykola Korotkikh, é dito ter sido morto várias semanas após a partida por ser suspeito de servir na força de segurança de Stalin. Alguns relatos dizem que uma fotografia dele vestindo um uniforme do NKVD foi encontrada e ele foi dedurado sob coação de sua irmã.

Seis meses e meio após o jogo, em 24 de fevereiro de 1943, três jogadores do Start foram fuzilados, conforme relato: Trusevich, Klimenko e Ivan Kuzmenko. Em 23 de fevereiro, uma fábrica onde os alemães faziam a manutenção de lagartas motorizadas é dita ter sido sabotada em um incêndio provocado por partisans.  Na mesma época, uma brigada de trabalhadores do campo de Syrets também foi acusada de estar tentando contrabandear salsichas; um dos trabalhadores deve ter tentado atacar o comandante do campo ou seu pastor alemão no momento da prisão. Em retaliação, os alemães fuzilaram os três prisioneiros da brigada.

Dougan, o autor escocês disse acreditar que os jogadores do Start foram mortos deliberadamente. “Pode bem ter sido uma chance real, mas estes caras não eram apenas três jogadores, mas três dos melhores,” ele disse. “Acho que as chances são muito grandes.”

Promotores em Hamburgo, Alemanha, investigaram o episódio. Mas eles encerraram o caso em 2005, dizendo que não encontraram nenhuma prova de que os jogadores do Start foram assassinados por derrotar o time do Flakelf naquele final de tarde em 1942.

Uma Lenda Distorcida

Este fato dificilmente foi mantido sem ser embrulhado com lenda. No final de 1943 e no início de 1944, uma vez Kiev libertada pelos soviéticos, artigos de jornal começaram a aparecer descrevendo detalhes que se encaixariam num mito contraditório conhecido como Jogo da Morte.

Inicialmente, as autoridades soviéticas estavam hesitantes em promover a lenda, preocupadas de que os jogadores fossem colaboracionistas nazistas por terem participado de uma série de jogos em 1942, de acordo com Tetiana Bykova, uma historiadora da Academia de Ciências da Ucrânia que estudou o chamado Jogo da Morte.

Mas artigos foram publicados e “o gênio foi liberado da garrafa,” diz Bykova. “Se você não pode apagar a estória, então você deve contá-la de modo que lhe traga a maior vantagem política possível.”

A solução soviética foi eliminar os outros jogos e embelezar a ideia da partida mortal, diz Bykova. Começando no início dos anos 1950, com a publicação de um artigo de jornal de Kiev e um livro chamado O Duelo Final e filmes subsequentes produzidos pela União Soviética e Hungria, a partida serviu tanto como uma fonte do orgulho ucraniano quanto como propaganda soviética.

“É como O Homem que matou o facínora*,” diz Dougan. “Quando a lenda é melhor do que a verdade, publique a lenda.”

Inicialmente, os jogadores do Start estavam relutantes em discutir o jogo. Uma boa razão para isso era o medo, como disseram Dougan e outros. Medo de serem vistos como colaboradores nazistas. Medo de estarem ressentidos por ter vivido sob condições menos duras do que os outros e por terem escapado do serviço militar. Medo de contradizer um conto de heroísmo soviético contra as atrocidades nazistas.

Isto ajuda a explicar por que Goncharenko deu versões conflitantes ao longo dos anos. E por que, em seu relato de 1985, ele ter dito que antes de Trusevich, o goleiro, ter sido fuzilado após seis meses da partida, suas palavras finais foram, “Vida longa a Stalin, vida longa ao esporte soviético!” De acordo com Dougan, Goncharenko “estava muito assustado.”

Quando a União Soviética caiu, relatos mais prosaicos da partida foram dados. Georgi Kuzmin, um jornalista ucraniano que cobriu o futebol por mais de 40 anos, disse que Goncharenko lhe contou em 1991 que ninguém pediu para os jogadores do Start não jogarem e que Goncharenko não acreditava que os jogadores foram deliberadamente assassinados por terem ganho a partida. Goncharenko deu um relato semelhante a um jornal ucraniano em 1996, dizendo que foi um jogo normal. Ele faleceu naquele ano.

Quando os antigos jogadores do Start receberam medalhas cerca de duas décadas após a partida, um deles, Mikhail Putisin, recusou a sua, dizendo mais tarde que ele não participaria de uma mentira, diz Kuzmin.

Bykova, a historiadora, disse que a evidência é que os alemães jogaram limpo e não machucaram o goleiro, pelo menos não propositalmente. Foram os ucranianos que se tornaram mais agressivos enquanto o jogo corria, ela disse. Ela também acredita que um relato mais honesto do jogo poderia ter se tornado mais poderoso do que o mito.

Hoje, o Start Stadium promove os jogos de verão para equipes amadoras e semiprofissionais, cujos jogadores nem sempre esperam até o apito final para fortalecer seu corpo com cerveja e cigarros. As crianças andam de bicicleta e patins em uma pista asfaltada em torno do campo bem aparado. E a estátua atrás das arquibancadas mal cuidadas perpetua a lenda do Jogo da Morte.

“Era propaganda,” disse Kuzmin, cuja história do futebol ucraniano, O que aconteceu e o que não aconteceu, foi publicada em 2010. “Os soviéticos poderiam mostrar que as pessoas poderiam morrer pelo bem da ideologia soviética. E as pessoas de Kiev gostavam da estória. É um bom conto de fadas. Mas todos devem saber a verdade.”

Para alguns, a verdade não é tudo.

No estádio do Dynamo em Kiev, há um monumento honrando os quatro jogadores do Start que morreram nas semanas e meses seguintes à partida de 1942. Os jogadores estão nus, segurando as mãos, fisicamente fortes. Viagens de turismo ao estádio e ao monumento não são incomodadas pelo debate. Ambos são celebrações, não investigações.

“Nenhum documento pode provar qualquer destas coisas,” disse Kirill Boyko, chefe do fã clube do Dynamo. “Somos patriotas pelo nosso país e time. Acreditamos na lenda.”


Nota:

* "The Man Who Shot Liberty Valance" (título original), 1962. Um senador que tornou-se famoso por matar um fora-da-lei conhecido retorna à cidade para o funeral de um velho amigo e conta a verdade sobre o que aconteceu.

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