Para aqueles de nós que nunca viram uma guerra, os relatos
dos soldados podem nos ajudar a compreender o que o Dia da Lembrança significa.
(N. do T.: o Dia da Lembrança, nos países da Comunidade Britânica é a homenagem
aos soldados mortos desde a Primeira Guerra Mundial, geralmente 11 de
novembro.)
Richard Radford é
tal soldado. Quando a guerra iniciou em 1939, ele largou seus estudos em
Cambridge e se alistou no exército britânico. Capturado na Líbia em 1942, ele
gastou o resto do conflito em campos de prisioneiros de guerra (PdG). Quando
foi libertado, ele escreveu uma análise da organização econômica de um campo de
PdGs. Vale a pena ler o artigo hoje, tanto para saber como era a vida durante a
guerra quanto para conhecer suas lições sobre “a universalidade e
espontaneidade” da atividade econômica.
Soldados nos campos
de PdG alemães receberam rações regulares durante boa parte da guerra. Seus
captores forneciam as necessidades básicas – pão, margarina e outros produtos.
A Cruz Vermelha e doadores privados forneciam o resto – cigarros, chocolate,
carne, chá, café e itens menos populares, como cenouras enlatadas. Tão logo os
soldados eram capturados, sistemas de troca surgiam, com não-fumantes
negociando cigarros por chocolate, por exemplo. Mas com o tempo, os campos se
tornaram economias altamente organizadas, com cigarros servindo como moedas.
Os cigarros tinham
muitas vantagens como dinheiro – eles eram relativamente homogêneos, duráveis e
com um tamanho conveniente para transações pequenas e, em pacotes, grandes.
Mesmo assim, eles também tinham desvantagens.
A Lei de Gresham diz
que dinheiro ruim expulsa o bom – e cigarros ruins expulsaram os bons. Por
exemplo, o uso de cigarros enrolados à mão levou a negociações complexas. Cada
cigarro era examinado individualmente para garantir que ele continha uma
quantidade aceitável de tabaco antes que a transação fosse completada.
Mas a maior
desvantagem do cigarro como moeda era que as pessoas queimavam seu dinheiro de
uma forma contínua. Com o tempo, o tabagismo reduziu o estoque de cigarros em
circulação. À medida que os cigarros tornaram-se raros, fumantes compulsivos
estavam dispostos a vender melado ou geleia por poucos cigarros, resultando em deflação.
A menos que uma carga de cigarros chegasse, “os estoques logo acabavam”, os
preços caíam, os negócios declinavam em volume e tornavam-se gradativamente um
assunto de permuta.” Mas muitos cigarros injetados nesta economia rapidamente
causavam problemas também – pessoas “inundadas” com cigarros logo ofereciam
quantidades generosas por comida, podendo resultar em inflação.
As flutuações
monetárias não eram a única causa do movimento dos preços nos campos. Comida
era abastecida em intervalos regulares, e seu preço subia e caía com a
quantidade em circulação: pão era abastecido nas quintas e segundas, quatro e
três dias de rações respectivamente, e na quarta e domingo à noite ele já havia
subido para pelo menos um cigarro por ração, de sete a oito na hora da ceia.
Alguém sempre guardava uma ração para vender então no maior preço: sua oferta
de “pão agora” se destacava na reunião entre um número de “pães de
segunda-feira” vendendo um ou dois, ou não vendendo nada – e ele sempre fumava
na noite de domingo.
Um economista do
século XXI poderia ver essas flutuações de preço como um sinal de mercados
trabalhando corretamente, respondendo à escassez e premiando a economia. Mesmo assim,
nos campos elas eram vistas de forma diferente. “Havia um forte sentimento de
que tudo era precificado em cigarros. Embora a avaliação do preço justo ... era
impossível de explicação, este preço era, no
entanto, bem conhecido.”
De fato, dos
aspectos mais fascinantes do relato de Radford, temos o surgimento de regras e
instituições. Algumas delas facilitaram a atividade comercial. Outras,
limitaram seu escopo – pois mesmo os campos de PdG tinham desigualdade
econômica, e muita desigualdade ameaçava a estrutura social do campo.
Havia um número de
fontes de desigualdade. Algumas pessoas recebiam mais doações privadas do que
outras. Algumas tinham vantagens especiais que permitiam-lhes fazer negócios
mais lucrativos. Por exemplo, um soldado britânico paquistanês foi capaz de trocar
carne por geleia e margarina em termos mais vantajosos na parte do campo onde
havia soldados indianos.
Mas talvez a maior
fonte de desigualdade era o tabagismo, ou dinheiro descartável. Os fumantes que
negociavam muita comida por cigarros se arriscavam a ficar subnutridos. Isto
era um problema social, não somente por causa da solidariedade entre os
prisioneiros, mas porque prisioneiros doentes eram levados ao hospital do
campo, onde eles se tornavam um sumidouro dos recursos coletivos dos soldados.
Mas o que poderia ser feito a respeito disso?
Uma solução simples
era restringir o comércio – com os artigos higiênicos da Cruz Vermelha, por
exemplo, ou com as rações alemãs.
Outra possibilidade era
a redistribuição total de não-fumantes para fumantes. Os soldados discutiam
interminavelmente se os não-fumantes deveriam receber ou não uma ração de
cigarros, mas nenhum ajuste das rações jamais era feito.
Finalmente, o
Oficial Senior britânico, respondendo a preocupações de saúde e opinião
pública, instituía a fixação de preços. Preços recomendados eram anunciados, e
quaisquer vendas que ultrapassassem mais de 5% do preço recomendado eram “desencorajadas
pela autoridade.” As escalas totais de preços eram ajustadas para cima e para
baixo de acordo com o suprimento de cigarros, mas os preços relativos não eram
ajustados.
E, à medida que a
guerra chegava ao fim, isto se tornou um problema.
Em agosto de 1944,
os suprimentos de itens e cigarros foram reduzidos à metade. Desde que ambos os
lados da equação foram mudados no mesmo valor, variações nos preços não foram
esperados. Mas este não foi o caso: a demanda não-monetária por cigarros era
menos elástica do que a demanda por comida, e os preços de comida caíram um
pouco. Mais importante, entretanto, foram as mudanças na estrutura dos preços.
A margarina e geleia alemãs, até aqui sem o valor devido para adequar os
suprimentos de manteiga e marmelada canadense, adquiriram novo valor. O
chocolate, popular e um produto certo, e
açúcar caíram. O pão aumentou; muitos contratos de pão por cigarros
foram quebrados, especialmente quando a ração de pão foi reduzida algumas
semanas depois.
Os preços fixados
pelos oficiais superiores não foram ajustados em resposta às variações na
estrutura do preço. Consequentemente, mais e mais vendas aconteceram no mercado
negro a preços desautorizado. “Eventualmente, a opinião pública voltou-se
contra a escala recomendada e a autoridade desistiu da luta.” E então:
Nas últimas semanas (da guerra), com deflação
incomparável, os preços caíram com rapidez alarmante, não existia nenhuma
referência, e o fornecimento e demanda, sozinha, determinava os preços... Uma
ração de margarina gradualmente afundou em valor até que ela trocava
diretamente por uma ração de melado. O açúcar despencou lamentavelmente.
Somente o pão manteve o seu valor.
Em condições de
extrema escassez, as regras e instituições que faziam os mercados trabalhar
ficaram sob pressão:
Em abril de 1945, o caos substituiu a ordem
na esfera econômica; as vendas eram difíceis, os preços não tinham
estabilidade.
Em 12 de abril, o
campo de Radford foi libertado. Seu relato da organização econômica de um campo
de PdG foi publicada no final daquele ano. Sua intenção era descrever “a
universalidade e espontaneidade” da atividade econômica. Mas o que ele mostrou
foi a força do espírito humano.
O texto completo de
Radford está aqui:
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