sábado, 12 de maio de 2012

[SGM] O Ano da Vingança

por Dominic Sandbrook


Daily Mail, 23/03/2012

Imagine vivendo em um mundo no qual lei e ordem foram destruídos completamente: um mundo no qual não existe autoridade, regras e punições.

Nas ruínas bombardeadas das cidades européias, gangues brutais reviravam lixo em busca de comida. Idosos são mortos por suas roupas, seus relógios ou mesmo seus calçados. Mulheres são violentadas sem piedade, muitas vezes durante uma única noite.

Vizinho se volta contra vizinho; velhos amigos tornam-se inimigos mortais. E o sobrenome errado, mesmo o sotaque errado, pode te matar.

Parece como uma coleção de pesadelos. Mas para centenas de milhões de europeus, muitos dos quais hoje aposentados polidos, respeitáveis, esta era a realidade nos meses desesperadores após o fim da Segunda Guerra Mundial.

Na Grã-Bretanha, lembramos da grande cruzada contra os nazistas como a nossa melhor hora. Mas como o historiador Keith Lowe mostra em um novo, extraordinário, perturbador e poderoso livro, "Continente Selvagem", é tempo de pensarmos novamente sobre o modo como a guerra terminou.

Para milhões de pessoas ao longo do Continente, ele argumenta, o Dia da Vitória marcou não o fim de um pesadelo, mas o começo de um novo. Na Europa Central, a Cortina de Ferro já estava descendo; mesmo no Oeste, os rituais de recriminação estavam sendo realizados.

Esta é a estória não da redenção, mas da selvageria. E longe de ser a "Hora Zero", como os alemães a chamam, maio de 1945 marcou o início de uma terrível queda para o anarquismo.

É claro que a Segunda Guerra Mundial foi aquela coisa rara, uma luta genuinamente moral contra um inimigo terrível que caiu para as profundezas da crueldade humana. Mas precisamente porque nós na Inglaterra escapamos da vergonha e do trauma da ocupação, raramente refletimos sobre o que aconteceu em seguida.

Após anos de bombardeio e matança, muito da Europa estava física e moralmente quebrada. De fato, ao contemplar os custos da guerra na Alemanha somente é simplesmente assustador.

Ao longo das ruínas do Reich de Hitler, quase 20 milhões de pessoas estavam sem teto, enquanto 17 milhões de refugiados, muitos dos quais antigos prisioneiros de guerra e trabalhadores escravos, estavam perambulando a terra.

Metade de todas as casas em Berlim estavam em ruínas; assim como sete de dez casa em Colônia.

Nem todos os alemães que sobreviveram à guerra apoiaram Hitler. Mas nas vastas extensões de seu antigo império conquistadas pelo Exército Vermelho de Stalin, a vingança terrível dos vitoriosos caiu sobre suas cabeças, independentemente de seu passado.

Na pequena vila prussiana de Nemmensdorf, o primeiro território alemão a cair nas mãos dos russos, todo homem, mulher e criança foi brutalmente assassinado. "Pouparei vocês da descrição das mutilações e da terrível condição dos corpos," disse um correspondente suíço a seus leitores.

 "Estas são impressões que vão além da pior imaginação selvagem."


Massacre de crianças em Nemmensdorf


Próximo da cidade prussiana oriental de Königsberg - agora a cidade russa de Kalaningrado - os corpos de mulheres mortas, que foram violentadas e então assassinadas, estavam jogados pelas ruas. E em Gross Heydekrug, escreve Keith Lowe, "uma mulher foi crucificada no altar da igreja local, com dois soldados alemães ao seu lado."

Muitos historiadores russos ainda negam esses relatos de atrocidades. Mas a evidência é esmagadora.

Através de boa parte da Alemanha, Lowe explica, "milhares de mulheres foram estupradas e então mortas numa orgia de violência verdadeiramente medieval."

Mas a verdade é que a guerra medieval não foi em nada selvagem quando comparada com a que foi feita contra o povo alemão em 1945. Onde se encontrava o Exército Vermelho, mulheres eram estupradas por gangues aos milhares.

Uma mulher em Berlim, levada atrás de uma pilha de carvão, lembrou ter sido violentada por "vinte e três soldados, um após o outro. Eu tive que levar pontos no hospital. Nunca quis mais ter relações com qualquer outro homem novamente."

É claro que é fácil dizer que os alemães, tendo perpretado algumas das mais terríveis atrocidades na história humana na frente oriental, carregaram para si mesmos esse sofrimento. Mesmo assim, nenhuma pessoa sã poderia possivelmente ler o livro de Lowe sem tremer de horror.

A verdade é que a Segunda Guerra Mundial, que lembramos como uma grande campanha moral, levou danos incalculáveis para as sensibilidades éticas da Europa. E, na luta desesperada pela sobrevivência, muitas pessoas fariam qualquer coisa para conseguir comida e abrigo.

Alemães em estado de subnutrição após a guerra


Na Nápoles ocupada pelos Aliados, o escritor Norman Lewis viu como mulheres locais, seus rostos indicando se tratar de senhoras de família, alinhadas para vender seus corpos para jovens soldados americanos por pequenos pratos de comida.

Um outro observador, o correspondente de guerra Alan Moorehead, escreveu que ele tinha visto "o colapso moral" do povo italiano, que tinha perdido todo seu orgulho em sua "luta animal pela sobrevivência".

No meio do trauma da guerra e ocupação, os limites da decência sexual haviam simplesmente desaparecido. Na Holanda, a um soldado americano foi ofertada uma menina de 12 anos. Na Hungria, filas de meninas de 13 anos foram levadas ao hospital com doenças venéreas; na Grécia, médicos trataram de meninas infectadas por doenças venéreas tão novas quanto dez anos de idade.

Mais ainda, mesmo naqueles países libertados por britânicos e americanos, uma corrente profunda de ódio mergulhou a vida nacional.

Todos saíram da guerra com alguém para odiar.

Na Itália setentrional, cerca de 20.000 pessoas foram sumariamente assassinadas por seus próprios compatriotas nas últimas semanas da guerra. E nas praças das cidades francesas, mulheres acusadas de term dormido com soldados alemães eram despidas e seus cabelos raspados, seus seios marcados com suásticas enquanto multidões de homens permaneciam ao redor rindo. Mesmo hoje, muitos franceses se recusam a acreditar em tais cenas.


Mulher francesa, acusada de colaboracionista, é humilhada em praça pública

A regra geral, contudo, era que quanto mais ao leste você estivesse, pior o horror se tornava.

Em Praga, soldados alemães capturados eram "surrados, molhados em petróleo e queimados até a morte." No estádio de esportes da cidade, soldados russos e tchecos estupravam mulheres alemãs.

Nas vilas da Boêmia e Morávia, centenas de famílias alemãs foram brutalmente assassinadas. E nas prisões polonesas, os prisioneiros alemães eram afogados em esterco, e um homem sufocado até a morte após ser obrigado a engolir um sapo vivo.

Mesmo naquela época, muitas pessoas viam isso como uma punição justa para os crimes nazistas. Os líderes aliados se recusaram a discutir as atrocidades, nem mesmo condená-las, porque eles não queriam perder o apoio popular.

"Quando você corta madeira," disse com desdém o futuro presidente tcheco Antonin Zapotocky, "os cavacos voam."

É para o grande crédito de Lowe que ele resiste a fazer um julgamento moral. Nenhum de nós pode saber como teríamos nos comportado sob circunstâncias semelhantes; é uma das grandes bençãos da história britânica que, apesar de nosso sacrifício para derrotar os nazistas, nossa experiência nacional foi muito menos traumática do que a dos nossos vizinhos.

É também verdade que por mais repelente que achemos, o desejo de vingança foi tanto instintivo quanto compreensível - especialmente naqueles terríveis lugares onde os nazistas castigaram tantos inocentes. Então, é chocante, mas não surpreendente, ler que quando os americanos libertaram o campo de extermínio de Dachau, um grupo de soldados enfileiraram os guardas alemães e simplesmente os metralharam.

Para qualquer padrão, isto foi um crime de guerra; mesmo assim, quem entre nós pode honestamente sizer que nos teríamos comportado de maneira diferente?

Lowe nota como "um pequeno grupo" de prisioneiros judeus conduziram uma vingança sangrenta contra seus antigos carrascos.

Tais afirmações, inevitavelmente, são profundamente controversas. Quando o veterano correspondente de guerra americano John Sack, ele próprio judeu, escreveu um livro sobre isso nos anos 1990, ele foi acusado de negação do Holocausto e seus editores cancelaram o contrato. (ver
http://en.wikipedia.org/wiki/An_Eye_for_an_Eye:_The_Untold_Story_of_Jewish_Revenge_Against_Germans_in_1945 )

Mesmo após a libertação do campo de Theresienstadt, um homem judeu viu uma multidão de ex-prisioneiros linchar um soldado da SS, e tais cenas não eram incomuns através de todo o Reich. (N. do T.: evidentemente isso foi uma injustiça, pois alguns de nossos amigos aqui do fórum disseram que os campos de concentração eram casas de repouso onde os judeus eram tratados com dignidade...rs). "Todos nós participávamos," um outro interno judeu do campo, Szmulek Gontartz, lembrou anos mais tarde. "Era doce. A única coisa que lamento é que não teve mais disso."


Rudolf Höss, comandante de Auschwitz, após sessão de interrogatório


Enquanto isso, através dos vastos territórios da Europa oriental, comunidades alemãs que viveram por séculos no sossego foram atingidas. Alguns tinham sangue em suas mãos, muitos outros, contudo, eram inocentes. Mas eles não podiam ter pago um preço mais alto pelo colapso das ambições imperiais de Adolf Hitler.

Nos meses após a guerra ter terminado, uma multidão de 7 milhões de alemães foram expulsos da Polônia, outros 3 milhões da Tchecoslováquia e quase 2 milhões mais de outros países da Europa Central, freqüentemente em condições deploráveis de fome, sede e doenças.

Hoje, isto parece com limpeza étnica em escala maciça. Mesmo naquela época, cônscios de que todos eles estiveram sob o jugo nazista, políticos poloneses e tchecos viram as expulsões como "o modo menos pior" para evitar outra guerra.

De fato, esta selvageria étnica não estava restrita aos alemães. Na Polônia Oriental e Ucrânia Ocidental, nacionalistas rivais conduziam uma guerra não declarada de brutalidade horrorosa, estupros e castigo contra mulheres e crianças e forçando quase dois milhões de pessoas a abandonarem suas casas.

O que estes homens queriam não era, no final, tão diferente das próprias ambições de Hitler: uma pátria etnicamente homogênea, limpa dos últimos remanescentes de contaminação estrangeira.

Em 1947, num empreendimento chamado Operação Vistula, os poloneses reuniram seus últimos cidadãos ucranianos e os deportaram para o lado ocidental do país, que havia feito parte da Alemanha. Lá, eles foram assentados em cidades desertas, cujos velhos habitantes haviam sido deportados para a Alemanha Ocidental.

Foi, escreve Lowe, "o ato final numa guerra racial iniciada por Hitler, continuada por Stalin e completada pelas autoridades polonesas."

Para o seu imenso crédito, os poloneses tiveram a coragem de enfrentar o que aconteceu àqueles anos atrás. De fato, dez anos atrás o presidente polonês Aleksander Kwasniewski publicamente pediu desculpas pela Operação Vístula.

Para a suprema ironia da guerra, foi na Polônia, e em outros lugares da Europa Oriental, que o Dia da Vitória marcou o fim de uma tirania e o começo de outra.

Aqui na Inglaterra, freqüentemente esquecemos que apesar de termos ido à guerra para salvar a Polônia, nós na verdade acabamos permitindo que ela caísse no despotismo cruel de Stalin.

Talvez não tivéssemos escolha; não havia apetite para uma guerra contra os russos em 1945, e estávamos exuastos de qualquer forma. Mesmo assim, nem todo mundo estava preparado para aceitar a rendição tão facilmente.

Em um dos últimos capítulos do livro profundamente emocionante de Lowe, ele lembra-nos que entre 1944 e 1950, cerca de 400.000 ucranianos estavam envolvidos com resistência anti-soviética na Ucrânia.

E o mais importante, nos estados bálticos da Lituânia, Letônia e Estônia, que Stalin havia brutalmente absorvido na União Soviética, dezenas de milhares de guerrilheiros nacionalistas conhecidos como Irmãos da Floresta lutaram em vão por sua independência, mesmo lutando batalhas enérgicas contra o Exército Vermelho e atacando prédios governamentais nas cidades principais.

Pensamos na Guerra Fria na Europa como um beco-sem-saída. Mesmo em 1965, partisans lituanos ainda lutavam contra a polícia soviética, enquanto o último guerrilheiro estoniano, August Sabbe de 69 anos, não foi morto até 1978, mais de 30 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial.

Nós na Inglaterra estamos certos de se orgulhar de nosso registro na guerra. Mesmo assim, é tempo, como o livro mostra, que enfrentemos algumas das ambiguidades morais daqueles anos sangrentos, desesperados.

Quando retratamos o fim da guerra, imaginamos multidões no centro de Londres, comemorando e cantando.

Raramente pensamos no terrível sofrimento e castigo que marcou as vidas da maioria dos europeus na época.

Mas quase 70 anos depois do fim do conflito, é hora de conhecermos as realidades escondidas do capítulo talvez mais obscuro em toda a história da humanidade.

http://www.dailymail.co.uk/news/article-2119589/How-neighbours-turned-anarchy-erupted-Europe-aftermath-WWII.html#ixzz1s2WdK8eG

Um vídeo do historiador Keith Lowe está aqui:



Nenhum comentário: