domingo, 13 de maio de 2012

O Lado Negro da Boa Guerra

Michael Bess


A Segunda Guerra Mundial é considerada pela maioria das pessoas um dos conflitos militares mais moralmente claros na história - a "Boa Guerra" fundamental, como o jornalista Studs Terkel certa vez a descreveu. E compreensivelmente: foi uma guerra defensiva, levada contra nações agressoras cujo catálogo de crimes é extremamente alto, mesmo em relação aos anais sinistros da maldade humana.

Simultaneamente, 60 anos de pesquisa e reflexão tem gradualmente trazido à luz numerosos aspectos deste conflito que não se encaixam corretamente no padrão de claridade moral preto-e-branco. Um dos desafios que enfrentamos no pensamento sobre a Segunda Guerra Mundial hoje, portanto, reside em encontrar um equilíbrio entre dois imperativos igualmente importantes. De um lado, temos que honrar a memória dos soldados e civis que se sacrificaram tanto para assegurar a vitória dos Aliados. Este imperativo de celebração é exemplificado por tais trabalhos eloqüentes como The Greatest Generation de Tom Brokaw ou Saving Private Ryan de Steven Spielberg. Tais trabalhos, não surpreendentemente, tendem a suprimir os aspectos mais ambíguos ou os aspectos moralmente complicados da guerra, colocando sua ênfase nas inumeráveis ações heróicas e altruísticas, grandes ou pequenas, que caracterizaram a luta contra as potências do Eixo.

Por outro lado,também precisamos esforçar-nos pelo entendimento mais preciso e compreensivo que podemos alcançar deste conflito de grande repercussão. Isto é o imperativo do exame crítico, e é exemplificado por um vasto corpo de trabalhos que focam nos aspectos mais controversos da guerra. Toda nação beligerante principal nesta guerra perseguiu políticas, ou realizou ações, que estão sob fogo desde 1945; e em cada nação, os debates sobre aquelas ações de guerra têm gerado argumentos controversos amargos sobre a natureza da memória pública e os significados de honra nacional e desonra. No final de todas as guerras - e a Segunda Guerra não é exceção - ambos os vitoriosos e os derrotados tendem a construir mitologias em torno de seu registro de guerra, de modo que as nuances morais ficam perdidas.

É somente equilibrando estes dois imperativos que podemos fazer realmente justiça à completa complexidade da Segunda Guerra Mundial.

Aqui, por exemplo, estão dois temas-chave da guerra que leva-nos à direção deste tipo de complexidade.

(1) A centralidade da raça. No contexto da Segunda Guerra, a palavra "racismo" é usada imediatamente para ser associada com o anti-semitismo nazista e os campos de extermínio. Ainda que seja verdade, o racismo existia em quase todo lugar no mundo dos anos 1930 e início dos anos 1940: o globo inteiro estava cheio dele - muitos tipos diferentes de racismo, com origens e objetivos igualmente diversos. Revolta de GIs negros no Kansas, revoltados com o tratamento de segunda classe; mulheres coreanas forçadas à prostituição pelas tropas japonesas; militares americanos complacentes em Pearl Harbor que totalmente subestimaram as capacidades da marinha japonesa; eslavos mortos pelos nazistas em Varsóvia; filipinos em Manila massacrados por uma guarnição japonesa em retirada; prisioneiros brancos enfraquecidos nos campos de prisioneiros japoneses no sudoeste da Ásia, onde as taxas de mortalidade eram seis vezes do que nos campos de prisioneiros da Alemanha ou Itália; cidadãos americanos de ascendência japonesa internados - todos estes indivíduos conseguiram seu lugar na estória dos racismos que permearam a Segunda Guerra Mundial, sem falar das indescritíveis cinzas de Auschwitz.

Isto não significa que todos estes casos devem ser classificados juntos na mesma categoria. Pelo contrário, cada situação, cada díade de perpetrador e vítima, merece sua crônica inflexível. O Holocausto permanece separado, um exemplar único da capacidade humana para a força industrial maliciosa. Ainda que seja impressionante, quando alguém reflete sobre ele, o quanto infiltrada estava a mentalidade racista nos anos 1930 e 1940: raça é indiscutivelmente um dos conceitos centrais da conflagração total que chamamos Segunda Guerra Mundial, tanto em causar o conflito quanto em modelar seu curso.

(2) A barbarização da guerra. Quando o Japão bombardeou as populações civis na China no final dos anos 1930, os EUA e a Inglaterra expressaram grande ultraje. Franklin Roosevelt, de acordo com seus biógrafos, ficou realmente chocado por esta atrocidade, e desenvolveu uma atitude bem mais hostil e inflexível em relação ao Japão como resultado. Os jornais nos EUA e Inglaterra alardearam denúncias veementes contra o Japão, e alguns políticos pediram um embargo econômico total contra esta nação que praticou guerra em tal modo bárbaro. Isto não era, nos olhos da maioria dos ingleses e americanos, algo que você pudesse encontrar a gente fazendo.

Passaram-se apenas sete ou oito anos, contudo, e o que encontramos? Hamburgo, Dresden, Tóquio - cidades inteiras, dezenas de milhares de civis não-combatentes em um piscar de olhos incinerados ou reduzidos a pedaços sob uma chuva constante de bombas britânicas e americanas. A matança em larga escala de crianças, mulheres e idosos havia agora se tornado facetas de rotina da guerra aliada.

No bombardeamento de Tóquio pelas forças americanas na noite de 9 de março de 1945, por exemplo, os bombardeiros B-29 condutores despejaram suas maiores bombas incendiárias M-47 como marcadores para garantir um alvo preciso no centro da cidade. Uma vez que os marcadores queimavam, o resto da força de bombardeiros então voava metodicamente indo e vindo sobre a cidade, preenchendo os alvos com rajadas densas de pequenas bombas incendiárias, de acordo com um padrão bem elaborado que garantia que nada no solo escapasse ileso. "Sabíamos que iríamos matar uma porção de mulheres e crianças," disse mais tarde o general da força aérea Curtis LeMay. "Tinha que ser feito."

Aproximadamente 90.000 japoneses, a maioria dos quais civis, morreram aquela noite em Tóquio. Em diferentes graus, este tipo de fenômeno afetou todos os principais beligerantes na Segunda Guerra Mundial: comportamento abominável veio para caracterizar a guerra "normal", não apenas entre os agressores do Eixo, mas também, numa certa extensão, entre aquelas nações lutando uma guerra defensiva. O bombardeamento pelas forças britânicas, americanas ou alemãs de marinheiros indefesos cujos navios foram afundados; a prática americana e japonesa durante o combate nas ilhas do Pacífico de pegar troféus de guerra grotescos como partes decepadas do corpo do inimigo; o fuzilamento de prisioneiros por soldados de virtualmente toda potência beligerante; o castigo de civis durante as operações militares; a invenção de dispositivos incendiários perversos e outras tecnologias que aumentavam a carnificina - todos estes realidades brutais fazem parte da história rigorosamente documentada da guerra conduzida pelos dois lados no conflito.

Mais uma vez, não deveríamos concluir disto que, porque todos os lados cometeram maldades, todos os lados terminaram moralmente equivalentes quando a balança termina sua medida. Isto é o que Hermann Goering tentou (de forma mal sucedida) argumentar nos julgamentos de Nuremberg. Pelo contrário, precisamos ser capazes de fazer distinções, detalhando o contexto e razão completos para o que foi feito em cada caso, e determinando a responsabilidade moral apropriada para cada nação pelas políticas que ela perseguiu e as escolhas que fez.

Se fizermos isso, a Alemanha e o Japão podem ser claramente acusadas de ter baixado para níveis mais profundos da barbárie durante esta guerra do que os anglo-americanos ou mesmo os russos. O bombardeamento estratégico anglo-americano - mesmo naqueles casos injustificáveis quando ele imolou não-combatentes desnecessariamente - ainda formou parte de uma campanha militar cujo objetivo era destruir a habilidade alemã e japonesa de levar a guerra adiante. Em contraste, os campos de extermínio nazistas e os massacres japoneses de civis nas cidades como Manila não trouxeram nenhuma vantagem militar. Eles não conseguiram nada mais do que assassinato gratuito numa escala colossal.

Meu ponto essencial aqui é honesto. Há tal coisa como uma guerra; mas mesmo em tal guerra, ações más e boas significativas freqüentemente podem ainda ser observadas em todos os lados. Podemos indicar aqui de forma útil a distinção entre jus ad bellum (a justificação moral para iniciar uma guerra) e jus in bello (a determinação moral de conduzir a guerra): o fato de que uma nação está lutando uma guerra justificável de auto-defesa não a dispensa da conduta moral pelos meios que ela adota e as ações que faz na sua luta para vencer.

As nações aliadas certamente têm muito que estar orgulhosas, quando olham para trás para a Segunda Guerra Mindial: a causa aliada nesta guerra era legítima - defesa contra agressão não-provocada por nações tirânicas. Nossas tropas exibiram bravura extraordinária e auto-sacrifício, através da grande tenda da guerra em seis anos e incontáveis teatros de guerra. Onde os exércitos anglo-americanos marcharam, eles chegaram como libertadores, e trataram as populações locais com decência e retidão. (Isto não pode ser dito, é claro, de nossos aliados soviéticos). Na vitória, os britânicos e yankees mostraram generosidade admirável para os povos derrotados; no final da guerra, eles pavimentaram o caminho para um grande ressurgimento das práticas e valores democráticos em muitas partes do mundo.

Mas, como os dois temas de racismo e barbárie discutidos acima sugerem, mesmo essa "Boa Guerra" fundamental provou ser, na análise final, um evento moralmente complicado. Temos que ter o prazer de celebrar a memória daqueles que tanto se sacrificaram em defender nossa liberdade. Ao mesmo tempo, nossa mitologia em torno da Segunda Guerra Mundial - e as guerras em geral - precisa mover-se além da imagem fácil da bondade ideal confrontando a maldade ideal numa disputa ideal com um resultado ideal: tal retidão existe somente nos filmes, não no mundo real onde vivemos nossas vidas ordinárias.


Michael Bess é professor de história na Universidade Vanderbilt. Seu novo livro, Choices Under Fire: Moral Dimensions of World War II foi recentemente publicado por Alfred A. Knopf.

http://sitemason.vanderbilt.edu/authors/michaelbess/LA%20Times

Nenhum comentário: