segunda-feira, 21 de maio de 2012

[POL] Ian Kershaw sobre os últimos dias do Terceiro Reich

Der Spiegel, 18/11/2011


SPIEGEL: Professor Kershaw, o senhor gastou os últimos três anos estudando o colapso da Alemanha Nazista. No final, somos obrigados a balançar nossas cabeças em estupefação com o absurdo da fase final, ou o senhor, como historiador também sente algo parecido a admiração pela perseverança dos alemães?

KERSHAW: O balançar de cabeça predomina, em qualquer sentido. Estou convencido que nós ingleses teríamos desistido muito mais cedo. É certamente incomum para um país continuar lutando até o ponto da completa aniquilação. É o tipo de coisa que geralmente vemos em guerras civis, mas não em conflitos nos quais nações hostis estão em guerra entre si.

SPIEGEL: A questão por que os alemães insistiram por tanto tempo é o ponto de partida para o seu novo livro. Qual teria sido a coisa mais óbvia a fazer?

KERSHAW: Num conflito armado, há eventualmente um ponto no qual um dos lados percebe que acabou. Se as pessoas no poder não desistem mas, ao invés disso, continuam a mergulhar a nação na ruína, há tanto uma revolução vinda debaixo, como foi o caso da Alemanha e da Rússia no final da Primeira Guerra Mundial, ou há um golpe pelas elites, que tentam salvar o que pode ser salvo. Um exemplo disso é a derrubada de Benito Mussolini na Itália em julho de 1943.

SPIEGEL: Qual o último ponto no qual os alemães deveriam ter reconhecido de que não ganhariam mais a guerra?

KERSHAW: Eu diria que no verão de 1944, após o desembarque bem sucedido dos Aliados na Normandia e os enormes ganhos territoriais no leste pelos russos. Naquele ponto, a guerra estava objetivamente perdida, mesmo se o público alemão não visse dessa forma. Mas começando em dezembro de 1944, após o fiasco da Ofensiva das Ardenas (Batalha do Bulge), estava claro para a elite no poder do Reich Alemão que não havia mais nada a ser ganho militarmente. Naquele ponto, teria feito sentido entrar em negociações de capitulação.

SPIEGEL: Até o final derradeiro, a liderança das forças armadas alemãs, a Wehrmacht, se agarrou à esperança de que a coalizão aliada seria quebrada, de modo a garantir uma paz em separado com as potências ocidentais. Dado o rápido fim da aliança militar na Guerra Fria, esta idéia não parece de todo absurda.

KERSHAW: de certo, a idéia não era idiota, mas naquele ponto da guerra, era completamente ilusório apostar que a coalisão terminaria. Nunca houve quaisquer considerações sérias por parte dos Aliados Ocidentais de fazerem a coisa sozinhos. A maior prioridade era derrotar o Reich de Hitler, e para aquele propósito a aliança com os russos era indispensável. Churchill, na medida em que não confiava em Stalin, argumentou isto muitas vezes e ficou surdo a todas as outras alternativas.

SPIEGEL: Seu livro começa com a tentativa frustrada de assassinato de Hitler em julho de 1944. Na sua visão, a tentativa de assassinato prolongou a guerra significativamente.

KERSHAW: O plano de 20 de julho levou a um fortalecimento do regime, pelo menos temporariamente. Houve um aumento perceptível da popularidade de Hitler com o público. O efeito de choque do ataque foi enorme, como podemos ver por muitos registros particulares. Mas o mais importante é o fato de que um expurgo do oficialato na Wehrmacht foi alcançado. Ultra-leais substituíram pessoas que eram consideradas não confiáveis. Toda a resistência foi abafada como resultado.

SPIEGEL: O senhor notou que a saudação hitlerista só foi introduzida na Wehrmacht no verão de 1944. Por que tão tarde?

KERSHAW: Hitler precisava da Wehrmacht mais do que qualquer outra organização do regime nazista, de modo que é o motivo pelo qual ele era tão reticente ao lidar com a liderança por tanto tempo. A tentativa de assassinato de 20 de julho levou-o a concluir que era tempo de fazer o exército entrar na linha. Dentro do oficialato, havia um consenso enorme com o Estado Nazista em termos de objetivos e mentalidade. Mas quando alguém considera um ultra-nazista como o Marechal de campo Ferdinand Schörner, vemos onde as diferenças existem entre alguém como ele e outros oficiais graduados, que foram nazificados mas não eram de fato nazistas verdadeiros.

SPIEGEL: No verão de 1944, a maioria das principais cidades alemãs estava em ruínas, e desde a derrota em Stalingrado, não havia notícias do front de quaisquer vitórias decisivas. Como estava o clima entre a população?

KERSHAW: Profundamente consciente, ansiosa e deprimida. Mas a confiança em Hitler não havia ido embora ainda. Foi somente no final de 1944 que sua reputação começou a cair como uma pedra. De acordo com um relatório do serviço de segurança próximo de Berchtesgaden, em março de 1945, no assim chamado Heldengedenktag (feriado nazista para comemorar os heróis mortos em combate), ninguém queria mais fazer a saudação hitlerista.

SPIEGEL: O quão confiáveis eram esses relatórios, que a liderança nazista usou para dimensionar o ânimo no país?

KERSHAW: Os relatórios oficiais da base eram relativamente moderados em suas afirmações. Em meados de 1944, o secretário de Hitler, Martin Bormann, impediu a disseminação dos resultados desses relatórios no Reich, argumentando que eles tornavam o clima sob uma luz negativa. Os relatórios dos escritórios de propaganda, que eram enviados para Joseph Goebbels, também revelam este declínio no ãnimo geral. Há marcas freqüentes na página onde Goebbels havia desenhado uma linha grossa com uma caneta verde, porque ele esperava relatórios de vitórias.

SPIEGEL: Foi Goebbels que, após 20 de julho, pediu grandes sacrifícios da populaçãocivil. Hitler era mais reticente em relação a isso?

KERSHAW: Hitler sempre foi sensível para qualquer coisa que enfraquecesse a moral do povo alemão. Foi uma lição que ele aprendeu da Primeira Guerra, em especial era importante manter as pessoas otimistas, ou poderia haver uma revolta vinda debaixo, como ocorreu em 1918. Este é o motivo que ele garantiu aos fazendeiros bávaros acesso à sua cerveja. Goebbels viu muito mais claramente que Hitler que a população alemã estava de fato preparada para aceitar medidas duras, desde que elas afetassem todos igualmente.

SPIEGEL: O sistema funcionou até o final. Somente alguns meses antes do fim da guerra, pedidos para construção foram submetidos e aprovados, e salários foram pagos. O último concerto da Filarmônica de Berlim aconteceu em 12 de abril de 1945.

KERSHAW: E a ofensiva soviética sobre a capital alemã começou quatro dias depois. A platéia sentou no auditório congelado da Filarmônica, vestindo casacos pesados, enquanto (Wilhelm) Furtwängler conduzia a Sinfonia nº 4 de Bruckner.

SPIEGEL: E em 23 de abril de 1945, o Bayern de Munique derrotou o TSV 1860 numa disputa de futebol.

KERSHAW: Sim, eles venceram por 3 x 2. Quando li isto, fiquei tão chocado que pensei que a data poderia estar errada. Mas ela era correta.

SPIEGEL: O senhor tem alguma explicação para esta necessidade em preservar a normalidade?

KERSHAW: A normalidade da rotina, mesmo se é somente uma falsa normalidade, é provavelmente essencial para o funcionamento da ordem humana. Você vai para seu trabalho verificar seus arquivos, mesmo se o trabalho é completamente inútil. E quando seu escritório não existe mais, pois foi bombardeado, você simplesmente parte para fazer outra coisa.

SPIEGEL: Mas isto não é o suficiente para manter a ordem pública.

KERSHAW: É verdade que isto não seria possível sem um serviço civil bem treinado. A burocracia exemplar era o esqueleto do regime. Mesmo o serviço postal foi mantido mais ou menos intacto. Quando a rede ferroviária foi destruída, o ministro postal do Reich emitiu uma ordem que motocicletas fossem usadas ao invés de trens. Quando houve um racionamento de gasolina para as motocicletas, eles passaram a usar bicicletas. No final, eles caminhavam pelas montanhas com uma mochila em suas costas. É bizarro imaginar, mas funcionou.

SPIEGEL: O senhor reconhece um caráter alemão específico no trato disso tudo?

KERSHAW: Eu não posso sequer imaginar que isso fosse possível na Itália ou na Grécia. Havia algo tipicamente alemão nisso. Não quero dizer como um esteorótipo nacional. Estou pensando mais de uma tradição cultural que é inserida através da educação e encoraja certas virtudes. Em um ponto do meu livro, eu menciono Friedrich Wilhelm Kritzinger, o secretário de estado na Chancelaria do Reich, que, quando perguntado durante um questionamento por que ele continuou trabalhando tão diligentemente até o final, respondeu sob surpresa que aquela era sua função. Ele sequer compreendeu a pergunta.

SPIEGEL: Falta aos alemães a habilidade de questionar?

KERSHAW: Alguém poderia colocar dessa forma. É claro, é na verdade uma coisa muito positiva ter um senso de dever ou mesmo honra. mas os nazistas distorceram completamente esses valores. O que significa dever para um general na fase final do Reich? manter lutando até tudo estar em ruínas? Ou emitir uma ordem de rendição?

SPIEGEL: Talvez houvessem muitos nazistas comprometidos verdadeiramente com a causa. O oportunismo pode às vezes ser benéfico.

KERSHAW: Isto é provavelmente verdadeiro. Em muitos casos, o destino de uma cidade foi determinado se ela seria administrada por pessoas que simplesmente queriam salvar suas peles, ou por fanáticos que ordenariam o fuzilamento a quem quer que pendurasse uma bandeira branca na janela. Considere Breslau (hoje Wroclaw), por exemplo, onde Karl Hanke, o Gauleiter local (líder regional do NSDAP), emitiu a ordem para resistir até o último homem. O centro da cidade foi pulverizado, e um sofrimento indizível castigou a população até Breslau cair finalmente em mãos soviéticas, foi tudo em vão.

SPIEGEL: Hanke garantiu a si próprio estar no último avião que partiu da cidade.

KERSHAW: Isto era típico desses funcionários do partido, que falavam para resistir até a última bala. Mas somente dois de 43 Gauleiters morreram em combate. A maioria garantiu sua segurança mais cedo ou abandonou a população.

SPIEGEL: Muitos historiadores militares enfatizam o espírito especial de luta da Wehrmacht alemã. Para o soldado raso, havia uma alternativa a continuar lutando?

KERSHAW: A única coisa que eu vejo seria a deserção, que significaria morte se fosse capturado.

SPIEGEL: Qual a sua opinião sobre Hitler como comandante militar?

KERSHAW: Sua influência, especialmente na fase final da guerra, foi certamente fatal. Mas muitos generais tornam muito fácil para si próprios, após o fato, culpá-lo por todas as decisões erradas. Se você ler os relatórios das reuniões, você verá que Hitler raramente ia contra eles. Você sabe, por exemplo, a respeito da tentativa gradualmente desesperada do Coronel-general Georg-Hans Reinhardt na Prússia Oriental em convencer Hitler para aprovar uma retirada tática do Grupo de Exército Central. Mas não foi apenas Hitler que rejeitou a idéia. De fato, ele gostava do apoio amplo dos oficiais em seu ambiente imediato.

SPIEGEL: "Olhei em seus olhos e soube que tudo iria ficar bem," disse o Almirante Karl Dönitz após uma reunião com Hitler. Outros oficiais tiveram sentimento semelhante. De onde esta fé absoluta no Führer veio entre homens que não eram totalmente passionais?

KERSHAW: Você deveria perguntar aos psicólogos. Por que Albert Speer vôou de volta ao bunker quando de fato tudo havia acabado? Aparentemente ele era incapaz de dissociar-se de Hitler até o final, e muitos outros no círculo íntimo sentiam a mesma coisa. Esta dependência emocional é também evidente no encontro dos Gauleiter em 24 de fevereiro de 1945, no qual os líderes partidários viram Hitler como um homem em frangalhos e ficaram completamente horrorizados pelo que viram. Mas então Hitler aproximou-se de cada homem individualmente e olhou-o nos olhos, quando então o clima de repente ficou mais leve, como o Gauleiter Rudolf Jordan escreve em suas memórias.

SPIEGEL: O encanto foi repentinamente quebrado quando Hitler cometeu suicídio.

KERSHAW: Tudo aconteceu muito rápido após aquilo. Goebbels foi quase o único que permaneceu ao lado de Hitler até a morte. Quase todo mundo fugiu. Mesmo o leal (Martin) Bormann tentou escapar do mundo do bunker e foi até onde ele podia.

SPIEGEL: Os lados bizarros de seu livro incluem as descrições das intrigas na corte. A Alemanha estava em cinzas e mesmo assim os paladinos estavam lutando por poder e influência.

KERSHAW: Isto também explica a persistente resistência do sistema. A falta de confiança mútua entre os membros da liderança impediu a formação de facções dentro da estrutura de poder que poderiam ter sido perigosas para Hitler. Havia, na melhor das hipóteses, alianças de curto prazo, que imediatamente sumiam quando uma pessoa descrobia uma vantagem, como a entre Goebbels e Speer.

SPIEGEL: O senhor descreve Speer como a figura mais enigmática no círculo íntimo do ditador. O que fez com que uma pessoa tão realista e inteligente acreditar até o final?

KERSHAW: Uma ambição inextingüível, e certamente a fé em Hitler e também a missão. Speer permanece um enigma para mim até hoje. Ninguém estava mais ciente da condição que o Reich estava e, mesmo assim, em março ele escreveu um memorando no qual ele recomendava a continuação da luta no Reno e no Oder. É claro que ele não citou isso em suas memórias.

SPIEGEL: O senhor escreveu que a indústria armamentista alemã produziu seu maior volume de armas em dezembro de 1944, apesar do bombardeio devastador.

KERSHAW: Sem a habilidade de Speer em manter a produção de armas sob as mais adversas condições, a guerra teria terminado muito mais cedo. Até a Ofensiva das Ardenas, ele e seus funcionários conseguiram verdadeiros milagres na produção de munição. Não há outro modo de expressar isso.

SPIEGEL: Se os golpistas de 20 de julho tivessem sido bem sucedidos com sua bomba contra Hitler, a guerra teria terminado no máximo no outono de 1944. Como historiador, o senhor desejaria que Hitler tivesse sido assassinado naquele dia ou está contente que a tentativa de assassinato tenha falhado?

KERSHAW: Tenho me perguntado sobre isso. Quando alguém escreve estas coisas, sente um desejo interior que a cisa tivesse sido bem sucedida. Acredito que esse seja o sentimento de alguém que não é fascinado pelas idéias do nazismo. No último ano da Segunda Guerra, mais pessoas morreram na Europa do que em todos os fronts por toda a Primeira Guerra. Politicamente falando, contudo, é provavelmente uma benção que os golpistas tenham falhado. De outro modo, as chances de ter uma Alemanha democrática teriam diminuído significativamente.

SPIEGEL: Professor Kershaw, muito obrigado pela entrevista.

Ian Kershaw, 68, é um dos mais respeitados historiadores britânicos. Até sua recente aposentadoria, ele era professor da Universidade Sheffield. Ele tem estudado a Era Nazista por quase 40 anos e é provavelmente mais conhecido por sua biografia de Hitler em dois volumes. Seu último livro é chamado "O Fim: O Desafio e Destruição da Alemanha de Hitler, 1944 - 1945."

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