sexta-feira, 18 de maio de 2012

Existe a Verdade?

Clóvis Rossi, 02/03/2012


Milagros Pérez Oliva, a ombudsman do jornal espanhol "El País", despediu-se do cargo no domingo, ao terminar o mandato de três anos. Despediu-se com um belo texto, que, em resumo, diz que, "em jornalismo, a verdade não pode ser a média entre as diferentes versões" e, mais grave ainda, nos acusa, aos jornalistas, de "termos sido negligentes na defesa da verdade factual".

Eu me proponho hoje discutir essas duas afirmações centrais ao artigo, cuja íntegra está aqui.

A primeira afirmação me parece essencialmente correta. Faz uns 30 anos, desde as famosas greves no ABC, que implico com a maneira como nos livramos de buscar a tal verdade factual, usando a cômoda muleta de publicar as diferentes versões. Ou, concretamente, o usual no jornalismo, em caso de greves, tem sido informar que o sindicato x calcula que x% dos trabalhadores pararam mas os patrões juram que foram apenas y%.

Ou, posto de outra forma, publicamos conscientemente pelo menos uma mentira, talvez duas.

Muito bem. A questão seguinte é saber se há de fato condições de o próprio repórter constatar quantos por cento aderiram à greve.

Nesse exemplo, acho até que dá, com esforço, claro, e contando com fontes confiáveis.

Mas há outro exemplo de versões contraditórias serem aceitas, que é o caso do cálculo de multidões. A "Folha" até fez um esforço de solicitar ao Datafolha que calculasse quantas pessoas havia em um comício x ou y ou em uma festa tipo Parada Gay. Mas é um esforço caro e, além disso, impraticável quando o evento não tem megaimportância.

Aí, acho que buscar a verdade factual é algo que escapa à capacidade do jornalista. Pelo menos da minha. Eu não sei calcular multidões e nem me atrevo a fazê-lo.

Pulemos agora para o segundo ponto levantado pela ombudsman, a suposta ou real negligência "na defesa da verdade factual".

Primeiro, acho que generalizações como essa são quase sempre incorretas. Haverá jornalistas que realmente negligenciaram a busca da verdade factual, mas haverá também os que se matam (às vezes literalmente) nessa busca.

O ponto aqui acho que é outro: existe A verdade?

Gosto muito de uma frase que ouvi de Carl Bernstein, o mitológico repórter do caso Watergate, em uma palestra séculos atrás na USP: "Reportagem é a melhor versão da verdade possível de obter".

Por que gosto? Porque uns 80% ou mais do que sai nos jornais não têm um jornalista como testemunha ocular. Logo, o trabalho do repórter é reconstituir os fatos a partir das versões das testemunhas oculares, sem que ele possa, de fato, jurar que A verdade é esta ou aquela.

Conto a propósito uma experiência pessoal que me angustiou meses: em 2002, Israel invadiu os territórios palestinos (a parte deles que havia sido devolvida à Autoridade Palestina). Um dado dia, houve um confronto pesado no campo de refugiados de Jenin, ao qual os jornalistas não tínhamos acesso. Bem que tentei chegar, junto com uma equipe de TV italiana, mas ficamos apenas numa estradinha que daria acesso à cidade, a alguns quilômetros de distância.

As versões sobre o fato eram absolutamente contrapostas: os palestinos juravam que houvera uma carnificina; os israelenses preferiam "violentos combates".

Quando finalmente consegui chegar ao campo de refugiados, tudo o que podia fazer era recolher testemunhos de ambos os lados. O texto final --aliás considerado antológico pelo ombudsman da época, se o leitor me permite um pouco de autopropaganda-- ia além de "violentos combates" mas não chegava a carnificina.

Passei os meses seguintes angustiado, achando que poderia ter carregado a mão demais ou de menos, até que saiu um relatório da Cruz Vermelha que dava razão à minha avaliação. Curiosamente, um jornalista inglês do "Guardian" publicou junto com o relatório o seu próprio alívio pelas informações levantadas pela Cruz Vermelha porque ele também ficara com a mesma sensação que eu.

Resumo: acho que fiz todo o esforço para obter a tal "verdade factual", mas não a dou por alcançada, como creio que ocorre em bom número de casos, que se passam longe dos olhos da gente.

Ainda assim, a discussão é absolutamente relevante.

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/clovisrossi/1056252-existe-a-verdade.shtml

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